O artigo abaixo foi
extraído da obra The Successful Error – A Critical Study of Freudian
Psychanalysis, de Rudolf
Allers.
Ousamos acrescentar ao texto abaixo o pensamento do
filósofo Karl Popper, segundo o qual a teoria do inconsciente de Freud (bem
como a teoria marxista) carecem de um requisito essencial à ciência, qual seja,
a falseabilidade (o problema da demarcação entre ciência e
pseudociência).
Popper estabelece uma demarcação entre o que
seja ciência e não-ciência através da definição de que qualquer teoria
científica propriamente dita deverá ser falseável, ou seja, deverá sujeitar-se
a ser falsa. Assim, são falsa ciência todas as teorias que se dizem
científicas mas que não se aceitam como falseáveis (falsificáveis, sujeitas a
testes).
“As teorias científicas distinguem-se dos mitos
unicamente por serem criticáveis e por estarem abertas a modificações à luz da
crítica[1]”.
Popper defende
que nem a teoria da história de Marx nem a teoria do inconsciente de Freud
estão sujeitas ao teste da falseabilidade, uma vez que qualquer que seja a
contra-evidência levantada contra as teorias de Marx ou de Freud há sempre uma
maneira de a teoria se acomodar à contra-evidência.
Segue o
texto baseado no trabalho de Rudolf Allers, e que se encontra publicado nos seguintes endereços:
Os grifos são nossos.
_______________________________________________
Rudolf Allers — ou o "Anti-Freud", como o
chamou Louis Jugnet — foi psicólogo eminente: discípulo direto de Freud,
trabalhou mais de 13 anos com Alfred Adler, e exerceu considerável influência
em figuras tais como Victor Frankl, que foi seu aluno. Católico, vienense,
desde cedo manifestou oposição às idéias de Sigmund Freud, que considerava
anticientíficas. Em 1940 publicou seu famoso trabalho "The Successful
Error – A Critical Study of Freudian Psychanalysis", de onde tiramos o
capítulo que se vai ler, e que constitui um pungente libelo contra os erros da
psicanálise.
O naturalismo e o materialismo são, necessariamente
antagônicos da religião. Uma atitude mental que introduz fatores imateriais e
trans-mundanos, que sustenta uma noção como a de uma alma espiritual e que
acredita na revelação, torna-se, para o espírito materialista, ininteligível,
estranha e perigosa. Tal mentalidade
é, verdadeiramente, o oposto do materialismo e, ao passo que as atitudes
religiosas existem e permanecem eficazes na vida humana, o materialismo sente a
sua posição ameaçada. Os defensores de uma explicação "científica"
da realidade vêem na religião, ou um inimigo, ou, pelo menos, um estádio
rudimentar da evolução, que tem de acabar por triunfar para assegurar o
"progresso" definitivo da raça humana.
A psicanálise é
profundamente materialista e não pode mesmo professar outra filosofia. A sua
base é o materialismo. Se os sequazes de Freud abandonassem o seu credo
materialista, ver-se-iam obrigados a deixar de ser psicanalistas. Há alguns que
estão convencidos de que podem acreditar, ao mesmo tempo, na verdade da
religião e na verdade da psicanálise, sem incorrerem em auto-contradição. Esses
homens imaginam isso, ou porque não conhecem suficientemente uma coisa e outra,
ou porque o seu espírito é de tal natureza que se acomoda às contradições, ou
ainda talvez porque não são bastante críticos para se aperceberem de tais
contradições.
Ninguém que
penetre no espírito da psicanálise e, ao mesmo tempo, seja inteiramente
conhecedor da essência da fé sobrenatural, pode acreditar que estas duas coisas
sejam compatíveis. Já varias vezes foi declarado, tanto por autores católicos
como protestantes, que a psicanálise é, basicamente anti-cristã. Não há
maneira de se sair deste dilema: ou se acredita em Cristo ou na psicanálise.
Os próprios sequazes de Freud não têm dúvidas a tal respeito. Para eles, a
religião não significa mais do que uma manifestação particular do espírito
humano, da mesma categoria que as práticas da magia, do totemismo ou da
bruxaria. Sempre os psicanalistas procuraram provar que a religião é um
produto de forças instintivas e da reação contra as mesmas.
Freud fala da
religião como de uma "ilusão". Os ritos religiosos são assemelhados a
práticas devidas à obsessão, ou identificados com as mesmas práticas. A
religião é uma neurose dos grupos.
Não vale a pena entrar em pormenores, porque todas as obras dos psicanalistas
estão cheias de observações no mesmo sentido. Não há dúvida alguma de que a sua
convicção é que a religião é um fato puramente psicológico, que é nociva e
condicionada pelos mesmos fatores que condicionam a neurose nos indivíduos, e
que, finalmente, para bem da humanidade, tem de ser abolida e substituída pelo
reino da ciência. Era isso que Freud esperava; a "ilusão"
devanecer-se-ia perante a luz da razão; a ciência substituiria a religião na
cultura e na vida, e uma nova época de prosperidade reinaria, quando a ciência
reinasse como senhor supremo.
Esta é a mentalidade dum homem que nasceu pouco
depois dos meados do século passado, que se educou na era do materialismo, do
"liberalismo" e das entusiásticas esperanças no futuro, e que foi
incapaz de se libertar da escravatura daquelas impressões que lhe haviam ficado
da sua adolescência. Hoje
verificamos que a ciência faliu, não porque não seja uma das mais
admiráveis realizações do homem ou porque se mostrasse incapaz de promover o
progresso, mas unicamente porque lhe atribuíram a capacidade de realizar
aquilo que, de fato, nunca poderá levar a cabo. Mas a fé otimista de Freud
na ciência permaneceu inquebrantável durante mais de oito décadas de sua vida.
E nós poderemos compreender a sua imutável atitude; mas o que não podemos
compreender é como pessoas de uma geração posterior, que tinham obrigação de
ver as coisas como elas são, podem ainda defender um credo como o cientificismo.
Para pessoas desta mentalidade, a religião é apenas um fato, como muitos
outros, na história da cultura humana. E essas pessoas não estão também
preparadas para admitir qualquer diferença entre as religiões. O último
livro de Freud é um exemplo frisante desta incapacidade de discernir certos
pontos que são decisivos. Assim, ele não conhece absolutamente nada das
enormes diferenças entre o monoteísmo judaico-cristão e a idéia pagã de um deus
supremo. A sua concepção sobre o monoteísmo dos judeus, devida à sua
aceitação da religião de Athon, a divindade do sol do Egito, mostra que não
conhece a essência do verdadeiro monoteísmo, e também que não procura
informar-se sobre coisas que ele mesmo era incapaz de conhecer devidamente
[1].
Basta um
conhecimento superficial da psicanálise para que qualquer pessoa possa ver o
enorme golfo que separa a mentalidade cristã daquela que se encontra implicada
na concepção freudiana acerca do homem. E é verdadeiramente impressionante ler
num artigo de O. Pfister que os ensinamentos de Jesus Cristo nos Evangelhos
apresentam grandes analogias com a teoria da psicanálise. Mas mesmo este autor,
que, segundo parece, é protestante, reconhece que há também grandes
dessemelhanças. E nós só temos a dizer que, de fato, as há. Outros teólogos
protestantes, como, por exemplo, o Dr. Runestam, da Universidade de Upsala,
pensam diferentemente; para esses, a psicanálise é profundamente contrária ao
espírito do Cristianismo.
Uma filosofia que nega o livre arbítrio; que ignora
a espiritualidade da alma; que, com um oco materialismo e sem qualquer
tentativa de prova, identifica os fenômenos mentais e corporais; que não
conhece outro fim senão o prazer; que se entrega a um confuso e obstinado
subjetivismo e que se mostrou cega à verdadeira natureza da pessoa humana — não
pode ter qualquer ponto comum com o pensamento cristão. É-lhe completamente
oposta.
O antagonismo
existente entre a mentalidade do freudismo, de um lado, e o espírito do
Cristianismo de outro, é claramente percebido por aqueles que acreditam que a
religião no mundo moderno deve ser suplantada pela psicologia, que o analista
deve ocupar o lugar do sacerdote e que o homem encontrará alívio para os seus
sofrimentos morais e respostas às suas dificuldades pessoais no consultório do
psicanalista, em vez de encontrar esse mesmo alívio na confissão que faz a um
padre católico. Tal idéia assenta sobre um errado conhecimento da religião e da
psicanálise; ambas estas idéias estão deturpadas. Não há qualquer
similaridade entre a confissão e a análise. A confissão é um sacramento. Os
espíritos modernos não atentam senão aos fatores psicológicos que nela se
encontram envolvidos, mas é preciso notar-se que mesmo esses fatores não são
comparáveis. O penitente diz, na confissão, as coisas que sabe, narra os fatos
de que se julga culpado e, eventualmente, expõe as dificuldades que o assaltam;
tudo aquilo de que ele trata é "material consciente". O confessor
nunca faz qualquer tentativa de explorar o inconsciente. A esperança e a boa
vontade, um profundo conhecimento e, finalmente, a graça de Deus irão ajudar o
penitente a dominar os seus hábitos pecaminosos, a evitar as recaídas, a fugir
às tentações e a progredir no caminho da perfeição.
Não sucede assim
com o analista e o seu paciente. Neste caso, aquilo de que o paciente tem
conhecimento pouco interessa; o que importa é o inconsciente. Nem um nem outro
confiam na boa vontade, porque a vontade não passa de um epifenômeno, e o que é
real está escondido nas profundezas do inconsciente. Não há qualquer sentimento de culpa pela
infração de uma ou outra lei moral objetiva, ou pela rejeição de um valor
moral, mas apenas uma constelação de tendências instintivas, o conflito
entre o super-ego e o id, e assim por diante. O analista nunca poderá ocupar o
lugar do sacerdote. A missão deste tem de ser desempenhada por ele e mais
ninguém [2].
Não há necessidade de estarmos a pôr à prova a
paciência do leitor, trazendo para aqui as idéias que os psicanalistas têm
defendido pelo que diz respeito à religião.
Todos ele têm falado muito sobre um assunto que
apenas superficialmente conhecem e, além disso, confiam largamente nas suas
concepções etnológicas que, como já vimos [3], estão muito longe de ser dignas
de crédito. As suas conclusões relativamente a práticas religiosas, aos ritos,
à psicologia da fé e a outros assuntos semelhantes, muito dificilmente poderão ser
tomadas a sério. Muitas dessas idéias são positivamente ridículas e mostram uma
ignorância crassa.
Temos, porém, de enfrentar uma questão. Por que é
que os psicanalistas têm um tão notável interesse pela religião? Há mais obras
e artigos na literatura psicanalítica que tratam de problemas mais ou menos
relacionados com a religião do que se pode imaginar. Parece que o espírito
analítico está possuído de uma curiosa obsessão, e que se sente incapaz de se
libertar dela. Não há dúvida de que a religião tem desempenhado um importante
papel na história, e continua a influenciar mais a atitude geral da humanidade
do que a própria ciência. A ciência, considerada como tal, dificilmente exerce
qualquer influência; não é a própria ciência, mas a crença popular nela, que
tem contribuído muito para formar a mentalidade de hoje. Ora, os
psicanalistas não tratam de saber as razões por que o homem chega a acreditar
na ciência de forma tão exagerada. Consideram como um postulado o homem ter de
acreditar na ciência, mas procuram mostrar que qualquer outra crença,
especialmente no sobrenatural, tem de ser explicada por razões psicológicas. A
sua atitude é inegavelmente dúbia, devido à sua crença na ciência. Esses homens
estão presos ao "cientificismo". Acreditam fervorosamente na ciência,
como a panacéia por meio da qual a humanidade se há de erguer a um nível muito
mais elevado.
Esta atitude tem
certas raízes na história dos últimos sessenta ou cem anos. No próximo capítulo
diremos algumas palavras sobre este fenômeno. Mas o fenômeno não explica a
curiosa fascinação que a religião, e os problemas que lhe andam ligados,
exercem aparentemente sobre o espírito psicanalítico. Deve haver algum fator
mais diretamente ligado com a psicanálise e com a situação presente da
civilização em geral. Fazer luz sobre este ponto é coisa que se torna ainda
mais desejável, porque podemos assim alimentar a esperança de penetrarmos mais
na natureza da psicologia freudiana, ou antes na antropologia freudiana, e,
conseqüentemente, definirmos mais claramente a política que tem de ser
observada por um católico no que diz respeito à psicanálise. Todo aquele que
examine conscienciosamente a psicanálise e considere os fatos fornecidos por
esta psicologia, no que diz respeito à sua própria natureza, só poderá chegar a
uma conclusão. E tal conclusão há de ser expressa em termos muito breves: a
psicanálise é uma heresia.
Esta afirmação
parecerá, talvez, surpreendente. Os cristãos podem ver-se tentados a
rejeitá-la, porque não vêem nenhuma relação, ou qualquer terreno comum, entre a
psicanálise e a sua fé. Uma heresia — dirão eles — é uma forma deturpada da
verdadeira fé, que resulta de se desrespeitar ou desvirtuar qualquer dos
artigos fundamentais. Mas, seguramente, a psicanálise nada tem de comum com a
fé cristã.
Não altera um artigo fundamental, como faz o
Arianismo em relação à pessoa de Jesus Cristo, ou como faz o Protestantismo, em
relação à natureza da Igreja, ou como faz ainda o Pelagianismo, no que se
refere ao papel da graça na salvação do homem. O analista, por sua vez, não
levará a sério aquela afirmação. Entende ele que nada tem de ver com o
Cristianismo, que as suas atividades são científicas e que a ciência é
independente de toda a fé. Dirá que estuda religião apenas como um fato entre
tantos outros que a história da humanidade apresenta. E acabará por afirmar que
não pensa em negar ou alterar qualquer dos artigos da fé, porque, para ele,
tais fatos nada significam senão uma forma particular da ignorância, uma
superstição ou uma ilusão — e não se nega uma ilusão ou uma alucinação, mas
apenas se trata de estudar a sua origem e curar o paciente.
Não esperemos
poder convencer o psicanalista, nem nunca ele se considerará um herético.
Nenhum herético, através dos séculos que conta o Cristianismo, se considerou
alguma vez como tal. O herético, ou pretende estar dentro da Igreja, mesmo que
defenda opiniões que divergem largamente dos seus ensinamentos, ou declara que
é ele o único representante da verdade e da fé inalterada, e que a Igreja
abandonou o caminho do seu Fundador, caminho esse que ele procura descobrir de
novo.
Mas esperamos
poder convencer os católicos e, sem dúvida, todos aqueles que acreditam em
Cristo como Salvador e Redentor da humanidade. Muito desejaríamos poder conseguir isso, não só porque a atitude dos
cristãos, no que se refere à psicanálise, ficaria melhor definida e
fundamentar-se-ia melhor do que num vago sentimento de relutância e de ofensa
moral, mas também porque a psicanálise é apenas um exemplo, ou ilustração,
embora bastante notável, de uma atitude mental que se desenvolveu a ponto de
dominar a mentalidade geral no decorrer do último século. Essa atitude
tornou-se então muito influente, embora as suas raízes remontem ao passado da
cultura ocidental. Um melhor entendimento daquilo que a psicanálise é, e um
melhor conhecimento da natureza do espírito que ela cria, habilitar-nos-ão a
seguirmos com mais clareza os rastos desse mesmo espírito em outras
manifestações do nosso mundo moderno.
O caráter herético da psicanálise tornar-se-á
claramente visível quando tivermos posto a descoberto as suas raízes e
inspecionado os seus antecedentes. Será isso a nossa tarefa no próximo
capítulo. Aqui, apenas nos referimos ao bem conhecido fato de que as
heresias, através dos séculos do Cristianismo, sempre sentiram a necessidade de
afirmar, cada vez mais, os seus direitos. É como se os hereges sentissem a
consciência culpada e, com o fim de a fazerem calar, se sentissem forçados a
apregoar as suas supostas razões difamando a Igreja, contra a qual se
levantavam. [...]
Os católicos sabem também, não obstante se sentirem alarmados com a idéia de não serem modernos, que tudo aquilo que realmente contradiz os ensinamentos da sua fé não pode ser verdadeiro. Sabem, como coisa certa, que uma filosofia ou uma ciência que desrespeita concepções fundamentais do Catolicismo há de acabar por desaparecer, por muito grande que seja o seu sucesso na hora presente. Sustento que a psicanálise é um enorme e perigoso erro. E o meu interesse é evitar que o maior número de pessoas possível — e, em primeiro lugar, tantos cristãos quanto possível — caiam nas garras de tal erro.
Os católicos sabem também, não obstante se sentirem alarmados com a idéia de não serem modernos, que tudo aquilo que realmente contradiz os ensinamentos da sua fé não pode ser verdadeiro. Sabem, como coisa certa, que uma filosofia ou uma ciência que desrespeita concepções fundamentais do Catolicismo há de acabar por desaparecer, por muito grande que seja o seu sucesso na hora presente. Sustento que a psicanálise é um enorme e perigoso erro. E o meu interesse é evitar que o maior número de pessoas possível — e, em primeiro lugar, tantos cristãos quanto possível — caiam nas garras de tal erro.
Há uma concepção fundamental na religião cristã que não é apenas desprezada mas, simplesmente, negada pela psicanálise. É a
concepção do pecado. Em psicanálise não há pecado. A sua filosofia é decididamente determinista e a
noção do pecado pressupõe o livre arbítrio. Também não há lugar para a
noção de pecado neste sistema, porque o comportamento humano, de acordo com os
princípios da antropologia freudiana, não depende das forças conscientes, mas
sim de forças inconscientes. Isto é apenas uma conseqüência lógica
do fato de que a psicanálise interpreta a consciência, não como o
reconhecimento da conformidade ou não conformidade com as leis eternas da moral
ou dos valores, mas como a expressão de um equilíbrio restabelecido, ou
perturbado, de forças instintivas. A psicanálise vê necessariamente na
consciência um mero fenômeno psicológico. Tal concepção da natureza humana não
poderá exercer qualquer coisa que se assemelhe a responsabilidade.
Desnecessário
será dizer que a psicanálise nada tem de ver com quaisquer noções que se
refiram ao sobrenatural. Esta negativa completa do sobrenatural não é
própria duma ciência empírica que, prudentemente, limita as suas investigações
aos campos acessíveis à razão humana. O verdadeiro cientista tem grande
respeito pelos fatos, não se pronuncia sobre as coisas, unicamente porque as
não pode alcançar pelos seus métodos, e evita emitir juízos sobre assuntos cuja
compreensão não está dentro dos poderes da fraca razão do homem. Mas o
psicanalista vem dizer-nos que toda a crença no sobrenatural, seja na graça de
Deus, como no próprio Deus, na eficácia dos sacramentos ou na imortalidade da
alma, são tudo idéias que dimanam de fatores instintivos, que esta psicologia
se orgulha de ter descoberto e privado assim da sua força impressiva. A
psicanálise não vê diferença alguma entre a religião católica, os seus usos,
ritos e sacramentos por um lado, e os mais primitivos e fantásticos costumes
dos aborígines da Austrália ou da África central pelo outro.
Dificilmente se encontrará um artigo de fé que não tenha sido submetido à análise, e que não tenha sido objeto de uma "explicação" psicanalítica. Estas chamadas explicações causariam abalo num espírito católico, se não fossem manifestamente baseadas numa absoluta incapacidade para compreender a doutrina que se pretende explicar.
Dificilmente se encontrará um artigo de fé que não tenha sido submetido à análise, e que não tenha sido objeto de uma "explicação" psicanalítica. Estas chamadas explicações causariam abalo num espírito católico, se não fossem manifestamente baseadas numa absoluta incapacidade para compreender a doutrina que se pretende explicar.
Nos parágrafos anteriores apenas nos referimos às
relações da psicanálise com a fé católica sem nada termos dito a respeito da moral
católica. Vamos agora dizer alguma coisa sobre tal assunto.
A psicanálise,
considerada como tal, nada tem a dizer sobre moral. Quer-se uma ciência, e as ciências podem
fazer afirmações apenas sobre o que é, nunca sobre aquilo que devia ser.
Esta é que é a verdadeira ciência. Mas não é próprio de verdadeiros
cientistas o uso que eles atualmente fazem da ciência para propagar qualquer
"reforma" da moral, ou para declararem que esta ou aquela atitude
está, ou deixa de estar, de acordo com a moral. Tais afirmações feitas em
nome da ciência são, sem dúvida, não a expressão de conclusões que os fatos
impusessem ao espírito, mas a expressão de convicções que tem uma origem
completamente diferente. A ciência apenas nos pode dizer os meios de que nos
podemos servir para atingir algum fim, mas nada conhece acerca desses fins. A
medicina não decreta que a saúde tem de ser conservada; apenas nos ensina como
devemos proceder para a conservar. A expressão, tantas vezes ouvida, de
"educação científica", ou significa que devemos aprender na ciência a
melhor forma para realizarmos os nossos fins, ou não significa coisa alguma.
Todo aquele que acreditar que a ciência é capaz de
fazer qualquer afirmação sobre a razão por que as pessoas têm de ser educadas
não conhece coisa alguma sobre a verdadeira natureza da educação. E o mesmo
sucede com a moral: "ética científica" é uma expressão sem sentido
algum.
Mas mesmo o cientista é um ser humano e, como tal,
não pode deixar de ter as suas convicções, os seus ideais e os seus desejos. É
apenas natural, embora não seja justo, que ele procure, ainda que
"inconscientemente", apresentar as suas idéias e ideais pessoais como
se derivassem das ciências. As ciências que têm por objeto o homem não são as
que estão especialmente arriscadas a estenderem-se para um campo onde não têm
competência. Pelo fato de que a saúde é um bem naturalmente desejado pelo
homem, a medicina facilmente chega a acreditar que os seus ensinamentos sobre
medidas higiênicas são da mesma natureza dos preceitos morais. Pelo fato de que
a psicologia conhece que um espírito funcionando normalmente é um valor
desejado, o psicólogo julga-se autorizado a enunciar regras sobre educação. A
psicologia médica está ainda mais propensa a cometer este erro do que qualquer
outra espécie de psicologia. O médico psicólogo observou muitíssimas vezes as
desastrosas conseqüências que uma educação errada pode ter no desenvolvimento
do caráter e da personalidade. Portanto, vem simplesmente declarar que este ou
aquele método de educação "tem" de ser adotado. Assim, mais
necessário se torna examinar cuidadosamente o espírito de uma psicologia que se
julga com o direito de impor à educação os seus métodos e alvos.
Educação é mais do que instrução; é, primariamente,
a construção de uma personalidade moral. A ética e a educação estão, portanto,
intimamente correlacionadas. E a educação
não termina depois de se ter freqüentado uma escola superior ou um colégio:
praticamente, a educação nunca termina. Somos educados pelos fatos, pelas
influências do meio ambiente e pelas idéias, de forma que temos de nos educar a
nós mesmos.
Uma psicologia nascida dum espírito decididamente
anti-cristão não pode ser senão excessivamente perigosa. Mesmo que o
psicanalista se esforce por evitar qualquer ofensa às idéias e sentimentos
religiosos ou morais do paciente, não o poderá conseguir. O seu método, as suas
interpretações, e toda a sua mentalidade são de uma natureza manifestamente
hostil ao espírito cristão. Essa mentalidade dá-se a conhecer a todo o momento,
e encontra-se implícita em cada uma das mais triviais observações. Ainda que o
analista esteja resolvido a abster-se de toda a influência sobre a fé ou moral
do paciente, a sua resolução será ineficaz, e ele não poderá deixar de
transmitir a esse paciente o contágio de um espírito anti-cristão.
Há alguma coisa
profundamente errada neste espírito, e o que está errado melhor se aperceberá,
se considerarmos as idéias que a psicanálise professa a respeito do homem
normal. A teoria de Freud era, e ainda o é em grande extensão, um processo para
a cura de doentes nervosos. Todo o tratamento tem de ter como ponto de
referência alguma idéia de normalidade, porque a obtenção dessa normalidade é o
sinal característico de que o tratamento foi bem sucedido. Freud disse, mais do
que uma vez, que um homem é normal quando está apto a trabalhar e a gozar a
vida.
Não há nada mais na concepção psicanalítica sobre a
natureza normal do homem. Gozar implica,
sem dúvida, a adaptação à realidade, desde que, não sendo assim, o desprazer
seria maior do que o prazer.
Esta concepção foi estabelecida de novo, por
exemplo, por Hendriks, que declara que a culminação do desenvolvido ego
consiste em o indivíduo se tornar capaz de manter a sua existência, e assegurar
uma satisfação adequada dos instintos libidinais e agressivos, num ambiente
socializado de adultos. Estas definições são, como se está a ver, muito
incompletas; os fatores morais são absolutamente ignorados ou, antes, estão
incluídos na noção de ajustamento ao meio social. É um erro
largamente divulgado o acreditar-se que a moral está limitada às relações com
os nossos vizinhos: desprezam os deveres para com a própria pessoa, como
desprezam os deveres para com Deus.
Daqui se segue
que a psicanálise se mostra incapaz de avaliar devidamente certos fenômenos,
como o sentimento de culpa ou a consciência. A consciência tem origem — observa
um autor — numa identificação hostil. Vê-se que este autor não teve, no seu
espírito, a mais rápida visão do fenômeno a que se refere. Outro diz-nos que o desejo de confessar o
pecado cometido — não precisa de ser no confessionário, porque este desejo
pertence à natureza humana — resulta de um impulso de revelação, que está
relacionado com o "instinto parcial" do exibicionismo. E há
ainda um terceiro autor que nos vem dizer que a necessidade da confissão está
relacionada com o erotismo oral. Não será preciso multiplicar os exemplos. Os
três já mencionados revelam uma ignorância de tudo quanto se refere a religião
e a psicologia geral.
A concepção
naturalista da natureza humana vem colorir todas as afirmações feitas sobre
moral. Os verdadeiros mandamentos, as leis eternas, são coisas que não
existem, de acordo com este ponto de vista. E tal mentalidade não pode
senão ter uma influência altamente destrutiva sobre qualquer pessoa que esteja
possuída de convicções diferentes. É possível que o tratamento psicanalítico de
uma pessoa nessas condições venha a ser mal sucedido, se as convicções são
suficientemente fortes, e se a diferença entre elas e as do analista se nota
com clareza, ou poderá ainda suceder que esse tratamento tenha como resultado
um gradual desmoronamento de tais convicções, devido à pressão contínua do
espírito hostil do psicanalista.
O perigo de a moral não naturalista ser destruída
pela análise, mesmo que o psicanalista não tenha intenção de o fazer, é sempre
muito grande, porque a moralidade — ou amoralidade — do freudismo pode
tornar-se uma forte tentação.
O psicoterapeuta logo é encarado pelo paciente como pessoa de autoridade;
chamem a isso transferência, se assim o quiserem, porque o nome pouco importa.
Uma concepção da vida que apela para o lado instintivo do homem exerce sempre
uma sedução natural e, quando tal sedução é fortalecida pela autoridade, poderá
tornar-se irresistível.
Não se pode dizer
com verdade que os psicanalistas preconizem um relaxamento de costumes, mas é
certo que eles concebem a moral por uma forma que é exatamente o oposto daquilo
que um católico sabe que a lei moral implica. Isto refere-se em primeiro lugar
à sexualidade, mas o mesmo sucede com qualquer outro aspecto do comportamento. E
temos de chegar à conclusão de que o católico se deve abster de qualquer íntimo
contato com as idéias freudianas. Se ele tiver dessas idéias inteiro
conhecimento, será o primeiro a evitar tal contato; no caso contrário, é
necessário pô-lo se sobreaviso.
Alguns
adversários da psicanálise têm procurado acentuar a "imoralidade" da
teoria e da sua atitude prática, no que diz respeito a certos problemas morais.
O analista, dizem eles, é obrigado a defender pontos de vista incompatíveis com
a moralidade cristã e, portanto, não pode deixar de ter uma influência
destrutiva sobre o comportamento moral dos indivíduos e sobre as idéias morais
do público. Este ponto precisa de uma elucidação.
A concepção que Freud e a sua escola formaram da
natureza humana é, sem dúvida, muito diferente da concepção formada pela moral
cristã e, principalmente, pela moral católica. O "princípio do prazer", mesmo depois da sua transformação
em "princípio de realidade" não é a espécie de força motriz que a
moral cristã supõe estar no fundamento do comportamento moral. A idéia de
que a natureza humana está em ordem e "normal", desde que o indivíduo
esteja apto para trabalhar e para gozar, não é idéia que possa ser aceitada
pela ética católica. Estes aspectos da psicanálise são mais importantes,
para responder à questão, do que a insistência de Freud sobre a sexualidade.
Por muito errada que seja a noção de uma libido estendendo-se a tudo, não
precisa de ser imoral.
O fato de que a psicanálise seja um sistema
puramente naturalista e incapaz de avaliar a religião e o comportamento
religioso em seu verdadeiro valor, é, sem dúvida, um sério inconveniente.
Alguns analistas sustentam que não há necessidade de pôr em perigo as crenças
religiosas de um indivíduo, desde que tais crenças não sejam o resultado de
fatores patológicos ou um obstáculo para a recuperação da saúde mental. No
entanto, será difícil ver como o analista, por muito que queira, evitará pôr em
risco a atitude religiosa. Qualquer paciente, mesmo de inteligência média,
não pode deixar de compreender que o espírito geral daquela teoria com a qual
se relacionou durante o tratamento é completamente hostil às suas crenças
religiosas. E pouco importa o fato de o paciente refletir ou deixar de refletir
nisso.
O antagonismo
entre a psicanálise e a moral católica, na medida em que tal antagonismo está
implicado no sistema da filosofia e da psicologia de Freud, é uma coisa; o
consciente eventual e a influência direta, aconselhando o paciente a agir
contra os princípios da moral católica, é outra. Se se soubesse que muitos ou
alguns psicanalistas aconselhavam os seus pacientes de forma que lhe sugerissem
um comportamento contrário à moral, o perigo deste sistema tornar-se-ia, sem
dúvida, muitíssimo grande.
Algumas das idéias sustentadas pelos psicanalistas
são contrárias às concepções católicas, sem que sejam, no entanto,
exclusivamente características do freudismo.
Desnecessário será dizer que um analista, encontrando
uma pessoa a braços com dificuldades domésticas, sem qualquer esperança e
incapaz de continuar a vida com o marido ou com a esposa, acabará por lhe
aconselhar a separação. Tal conselho poderá não ser mau, mas implica, na mente
do analista, a idéia de que, depois da separação, essa pessoa poderá voltar a
casar-se com alguém que lhe dê melhor vida.
Esse conselho podia ter sido dado por qualquer
médico não católico; as convicções que o originaram não são especificamente
freudianas, pois pertencem a um conjunto de idéias comuns a todas aquelas
pessoas que julgam possuir "um espírito liberal". O mesmo se pode
dizer da sugestão para se procurar a satisfação sexual prématrimonial. Seria
diferente, se se sugerisse a uma pessoa casada que, por qualquer motivo, procurasse
relações sexuais extra-matrimoniais.
É muito difícil saber qual é a atitude normal dos
analistas no que se refere a tais problemas, bem como é também muito difícil
ter a certeza de que certos relatos publicados são inteiramente dignos de
crédito. O tratamento psicanalítico pode, em alguns casos, principalmente se
não foi bem sucedido, deixar um ressentimento definido no ânimo do paciente, e
esse estado mental poderá muito bem deturpar, mesmo sem qualquer intenção
consciente de calúnia ou de prevaricação, a memória de coisas mencionadas
durante as horas de análise. É corrente, em alguns tipos da personalidade
nevrótica, um certo desrespeito pela verdade objetiva; por isso, os relatos que
nos são fornecidos por doentes nervosos têm de ser olhados com muita precaução.
Alguns psicanalistas podem ter professado uma atitude demasiadamente
"liberal", no que diz respeito a certas leis morais, mas há ainda
razão para perguntar se tal atitude resulta do fato de serem sequazes de Freud,
ou se resulta da sua mentalidade geral. Não nos devemos esquecer de que muitas
idéias, definidamente anti-católicas, no que se refere a moral, têm partido de
pessoas que não eram psicanalistas. As opiniões defendidas pelos bolchevistas
sobre o casamento, sobre relações sexuais etc., pelo menos na primeira fase do
seu domínio, não dependem de qualquer influência exercida pelos psicanalistas.
Não há dúvida de que os pontos de vista de Freud contribuíram para propagar as
discussões sobre assuntos sexuais. A insistência com que ele se referiu à
sexualidade, e as suas provas, aparentemente científicas, da importância
fundamental dos fatores sexuais na natureza humana, fortaleceram a posição
daqueles que dirigiam os seus ataques contra a moral cristã.
Mas não se pode
dizer que o próprio Freud pregasse diretamente uma moral anticatólica. No
entanto, pregou-a implicitamente.
Tanto quanto os
relatórios podem ser acreditados, fica-se, sem dúvida, com a impressão de que
alguns psicanalistas não sentem qualquer relutância em aconselhar atos decididamente
imorais, especialmente — e até exclusivamente — no que se refere ao
comportamento sexual. Num congresso de psiquiatras franceses realizado há anos,
o Dr. Genil-Perrin referiu-se a numerosos casos em que ele e outros
intervieram, e em que era freqüente darem-se conselhos de tal natureza. Mas é impossível lançar mão de cifras dignas de
crédito. Não podemos saber quantos psicanalistas teriam, eventualmente,
procedido dessa forma, nem tampouco podemos saber quantas vezes eles se viram
obrigados a fazê-lo. A única coisa de que podemos estar certos é que o
sistema da psicanálise não contém fator algum que iniba o analista de se servir
de tal expediente. E sabemos também que existe um grande número de relatórios
que mencionam essa atitude por parte de alguns psicanalistas, mas sendo de
presumir que nem todos eles são falsos ou exagerados.
No entanto, a
justiça pede que limitemos o nosso juízo a fatos que podem ser provados, e a
única coisa que se pode provar é o antagonismo essencial que existe entre o espírito
geral do freudismo e a mentalidade católica. Isto, contudo, seria suficiente
para obrigar os católicos a evitarem, tanto quanto pudessem, o contato com a
psicologia psicanalítica, e a evitarem qualquer situação que pudesse dar ao
analista, mesmo contra a vontade da pessoa, ocasião de influir sobre as suas
idéias.
A enumeração das proposições da escola de Freud que brigam incontestavelmente com a fé cristã podia ainda continuar por algum tempo. Julgamos, porém, que dissemos já o bastante. Nenhum católico poderá professar tais idéias — a idéia da religião como uma neurose obrigatória, a idéia de Deus como sendo a imagem do pai, e a idéia da comunhão remontar à refeição totemística etc. — idéias essas que não podem ser consideradas senão como falsas, para não dizermos sacrílegas. Mas há sempre uma objeção. Não será possível separar o método da sua inaceitável filosofia? Não poderemos nós, embora sejamos cristãos, usar o instrumento fornecido pela psicanálise? Não poderemos pôr de parte a concepção naturalista, as idéias descabidas sobre religião, a negação da liberdade, o papel exagerado atribuído aos instintos, e "batizar", digamos assim, a psicanálise, mais ou menos como se diz que Santo Agostinho "cristianizou" o Neo-Platonismo e S. Tomás "batizou" Aristóteles? Estes filósofos pagãos também ensinaram coisas que a filosofia cristã nunca pôde aceitar, mas ensinaram outras coisas que eram verdadeiras, ou que, pelo menos, com alguma modificação, podiam ser verdadeiras. Se a filosofia cristã tivesse procedido com a filosofia pagã como se deseja que o católico proceda para com a psicanálise, isso representaria uma enorme perda para a humanidade, e teria talvez obstado o desenvolvimento da verdadeira filosofia cristã. Que razão há, portanto, para tal radicalismo perante a psicanálise, radicalismo esse de que a Igreja nunca se sentiu possuída no passado?
A enumeração das proposições da escola de Freud que brigam incontestavelmente com a fé cristã podia ainda continuar por algum tempo. Julgamos, porém, que dissemos já o bastante. Nenhum católico poderá professar tais idéias — a idéia da religião como uma neurose obrigatória, a idéia de Deus como sendo a imagem do pai, e a idéia da comunhão remontar à refeição totemística etc. — idéias essas que não podem ser consideradas senão como falsas, para não dizermos sacrílegas. Mas há sempre uma objeção. Não será possível separar o método da sua inaceitável filosofia? Não poderemos nós, embora sejamos cristãos, usar o instrumento fornecido pela psicanálise? Não poderemos pôr de parte a concepção naturalista, as idéias descabidas sobre religião, a negação da liberdade, o papel exagerado atribuído aos instintos, e "batizar", digamos assim, a psicanálise, mais ou menos como se diz que Santo Agostinho "cristianizou" o Neo-Platonismo e S. Tomás "batizou" Aristóteles? Estes filósofos pagãos também ensinaram coisas que a filosofia cristã nunca pôde aceitar, mas ensinaram outras coisas que eram verdadeiras, ou que, pelo menos, com alguma modificação, podiam ser verdadeiras. Se a filosofia cristã tivesse procedido com a filosofia pagã como se deseja que o católico proceda para com a psicanálise, isso representaria uma enorme perda para a humanidade, e teria talvez obstado o desenvolvimento da verdadeira filosofia cristã. Que razão há, portanto, para tal radicalismo perante a psicanálise, radicalismo esse de que a Igreja nunca se sentiu possuída no passado?
A resposta é, simplesmente, que tal analogia não
pode existir. Tentamos mostrar, no capítulo oitavo, que se não pode separar a
filosofia do método, e que aquele que adota o segundo tem, necessariamente, de
perfilhar a primeira. Mas há outra razão para a intransigência que aqui
consignamos. A psicanálise não está para o católico na mesma relação em que
a filosofia pagã estava, nos primeiros séculos da cristandade, para com a
filosofia católica. A psicanálise é mais semelhante ao Maniqueísmo, ou a
qualquer outra das grandes heresias, do que à filosofia de Plotino ou de
Aristóteles. E a Igreja nunca transigiu, por pouco que fosse, com qualquer
heresia.
O espírito da psicanálise pode-se chamar, e com muita razão, espírito pagão, mas não é o paganismo dos tempos pré-cristãos; é o paganismo que surgiu quando a Cristandade já existia há séculos. E é um espírito completamente diferente. O paganismo dos velhos tempos morreu, pelo menos nos países de civilização ocidental, e não há possibilidade de o fazer reviver. Tal espírito não pode tornar a aparecer, porque as alterações que o pensamento humano sofreu, debaixo da influência de dois mil anos de Cristianismo, não podem voltar atrás. O neopaganismo não é um regresso aos tempos de Platão ou de Sêneca: é, simplesmente, uma revolta.
Para compreender a natureza desse espírito, é necessário examinar a origem da psicanálise e as forças que contribuíram para o seu aparecimento. E teremos também de investigar as condições que tornaram possível o surpreendente sucesso das concepções freudianas. Desta maneira chegaremos — ao menos é essa a nossa esperança — a um melhor conhecimento da verdadeira natureza desta teoria.
O espírito da psicanálise pode-se chamar, e com muita razão, espírito pagão, mas não é o paganismo dos tempos pré-cristãos; é o paganismo que surgiu quando a Cristandade já existia há séculos. E é um espírito completamente diferente. O paganismo dos velhos tempos morreu, pelo menos nos países de civilização ocidental, e não há possibilidade de o fazer reviver. Tal espírito não pode tornar a aparecer, porque as alterações que o pensamento humano sofreu, debaixo da influência de dois mil anos de Cristianismo, não podem voltar atrás. O neopaganismo não é um regresso aos tempos de Platão ou de Sêneca: é, simplesmente, uma revolta.
Para compreender a natureza desse espírito, é necessário examinar a origem da psicanálise e as forças que contribuíram para o seu aparecimento. E teremos também de investigar as condições que tornaram possível o surpreendente sucesso das concepções freudianas. Desta maneira chegaremos — ao menos é essa a nossa esperança — a um melhor conhecimento da verdadeira natureza desta teoria.
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1. Freud adota, pelo que diz respeito à história da
religião, o mesmo método que segue pelo que se refere à etnologia. Limita-se a
escolher, numa abundante literatura, apenas algumas palavras que se adaptam às
suas idéias preconcebidas.
Assim, presta grande crédito a um livro, no qual se
aventa a hipótese de que Moisés foi assassinado pelos judeus. Este trabalho foi
rejeitado pelas autoridades no assunto, mas isso não impede que Freud se apoie
sobre ele para os seus raciocínios.
A sua teoria, de
acordo com a sua maneira de pensar, não precisa de provas, pois é já de per si
uma prova de todas as asserções nela contidas. Ora, isto não é maneira de
proceder para um homem de ciência. Seria necessário que os psicanalistas prestassem atenção ao fato de as
referências, ou testemunhos de Freud, serem tão infelizes. Sempre que escolhe
um autor, trata-se de um indivíduo que não merece a consideração das
autoridades do assunto em questão.
2. Para melhor elucidação sobre essas questões,
veja-se o meu artigo "Confessor e Alienista", Revista Eclesiástica,
1938, 99, 401.
3. Allers refere-se ao capítulo 9 do livro em
questão, chamado "A Psicanálise e a etnologia". [Nota da Editora]
[1] POPPER,
K.R., 1956, Acerca da inexistência do método científico, texto lido num encontro
dos Fellows of the Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences,
em Stanford, Califórnia, em Novembro de 1956. Prefácio da edição de 1956 do
livro O Realismo e o Objetivo da Ciência, Publicações Dom Quixote
(tradução), Lisboa 1987. p. 41.

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