Estudar o gramscismo é fundamental para entender a reengenharia social que atua na conquista do subconsciente das pessoas por meio da sutil implantação de um novo "senso comum".
Essa estratégia nefasta atua menos no combate ideológico e mais intensamente na conquista do subconsciente, na moda, na arte, na literatura, nos valores, arregimentando um exército de pessoas que nunca ouviram falar em Antonio Gramsci.
Esse arremedo de filosofia, que opera pouco na persuasão racional, age mais intensamente mediante uma penetração sutil no inconsciente das massas: "é o que se vê claramente pela sua ênfase na conquista das mentes infantis — um terreno onde o avanço da esquerda vem causando um dano incalculável a milhões de crianças brasileiras, usadas como cobaias de uma desastrosa experiência gramsciana".
O artigo de Olavo de Carvalho alerta, ainda, para os perigos - mesmo para os comunistas - de uma adesão apressada ao gramscismo (ou seja, antes de sua análise crítica). "Pode acontecer, por exemplo, que a estratégia gramsciana não gere outro efeito além de tornar os burgueses ateus, retirando os freios que a religião impunha à sua cobiça e ao seu maquiavelismo. Algo muito parecido aconteceu na própria terra de Gramsci: é impossível não haver conexão entre a decadência da fé católica e a transformação da Itália numa Sodoma capitalista."
Nesse sentido, recomendo a leitura do artigo em anexo. INDISPENSÁVEL para aqueles que querem entender um pouco o porquê da inversão de valores que hoje testemunhamos, e para os que querem saber e combater a estratégia da nova esquerda.
No final do artigo é abordada a adoção da estratégia gramsciana pelo Partido dos Trabalhadores.
A NOVA ERA E A REVOLUÇÃO CULTURAL
Fritjof Capra & Antonio Gramsci
II
STO. ANTONIO GRAMSCI
E A SALVAÇÃO DO BRASIL
Fonte:
http://www.olavodecarvalho.org/livros/negramsci.htm (acesso em 07/10/2014)
QUEM DESEJE reduzir a um quadro coerente o
aglomerado caótico de elementos que se agitam na cena brasileira, tem de
começar a desenhá-lo tomando como centro um personagem que nunca esteve aqui,
do qual a maioria dos brasileiros nunca ouviu falar, e que ademais está morto
há mais de meio século, mas que, desde o reino das sombras, dirige em segredo
os acontecimentos nesta parte do mundo.
Refiro-me ao ideólogo italiano Antonio Gramsci.
Tendo-se tornado praxe entre as esquerdas jamais pronunciar o nome de Gramsci
sem acrescentar-lhe a menção de que se trata de um mártir, apresso-me a
declarar que o referido passou onze anos numa prisão fascista, de onde remeteu
ao mundo, mediante não sei que artifício, os trinta e três cadernos de notas
que hoje constituem, para os fiéis remanescentes do comunismo brasileiro, a
bíblia da estratégia revolucionária. Mas não está só nisso a razão da aura
beatífica que envolve o personagem. Da estratégia, tal como vista por ele,
constituía um capítulo importante a criação de um novo calendário dos santos,
que pudesse desbancar, na imaginação popular, o prestígio do hagiológio
católico ( uma vez que a Igreja, na visão dele, era o maior obstáculo ao
avanço do comunismo ). O novo panteão seria inteiramente constituído de
líderes comunistas célebres, e baseado no critério segundo o qual "Rosa
Luxemburgo e Karl Liebknecht são maiores do que os maiores santos de
Cristo" — palavras textuais de Gramsci. Os seguidores do novo culto, com
inteira lógica, puseram ainda mais alto na escala celeste o instituidor do
calendário, motivo pelo qual não se pode falar dele sem a correspondente unção.
E eu, temeroso como o sou de todas as coisas do além, não poderia iniciar esta
breve exposição do gramscismo brasileiro sem a preliminar invocação ao seu
patrono, em quem se depositam, neste momento, muitas esperanças de salvação do
Brasil. Digo, pois: Sancte
Antonie Gramsci, ora pro nobis.
Atendida esta devota formalidade, retorno aos
fatos. Gramsci ficou, dizia eu, meditando na cadeia. Mussolini, que o mandara
prender, acreditava estar prestando um serviço ao mundo com o silêncio que
impunha àquele cérebro que ele julgava temível. Aconteceu que no silêncio do
cárcere o referido cérebro não parou de funcionar; apenas começou a germinar
idéias que dificilmente lhe teriam ocorrido na agitação das ruas. Homens
solitários voltam-se para dentro, tornam-se subjetivistas e profundos. Gramsci
transformou a estratégia comunista, de um grosso amálgama de retórica e força
bruta, numa delicada orquestração de influências sutis, penetrante como a
Programação Neurolinguística e mais perigosa, a longo prazo, do que toda a
artilharia do Exército Vermelho. Se Lênin foi o teórico do golpe de Estado,
ele foi o estrategista da revolução psicológica que deve preceder e aplainar o
caminho para o golpe de Estado.
Gramsci estava
particularmente impressionado com a violência das guerras que o governo
revolucionário da Rússia tivera de empreender para submeter ao comunismo as
massas recalcitrantes, apegadas aos valores e praxes de uma velha cultura. A
resistência de um povo arraigadamente religioso e conservador a um regime que
se afirmava destinado a beneficiá-lo colocou em risco a estabilidade do governo
soviético durante quase uma década, fazendo com que, em reação, a ditadura
do proletariado — na intenção de Marx uma breve transição para o paraíso da
democracia comunista — ameaçasse eternizar-se, barrando o caminho a toda
evolução futura do comunismo, como de fato veio a acontecer.
Para contornar a dificuldade, Gramsci concebeu
uma dessas idéias engenhosas, que só ocorrem aos homens de ação quando a
impossibilidade de agir os compele a meditações profundas: amestrar o
povo para o socialismo antes de fazer a revolução. Fazer com
que todos pensassem, sentissem e agissem como
membros de um Estado comunista enquanto ainda vivendo num quadro externo
capitalista. Assim, quando viesse o
comunismo, as resistências possíveis já estariam neutralizadas de antemão e
todo mundo aceitaria o novo regime com a maior naturalidade.
A estratégia de Gramsci
virava de cabeça para baixo a fórmula leninista, na qual uma vanguarda
organizadíssima e armada tomava o poder pela força, autonomeando-se
representante do proletariado e somente depois tratando de persuadir os
apatetados proletários de que eles, sem ter disto a menor suspeita, haviam sido
os autores da revolução. A revolução gramsciana está para a revolução
leninista assim como a sedução está para o estupro.
Para operar essa virada, Gramsci estabeleceu
uma distinção, das mais importantes, entre "poder" ( ou, como
ele prefere chamá-lo, "controle" ) e "hegemonia". O
poder é o domínio sobre o aparelho de Estado, sobre a administração, o exército
e a polícia. A hegemonia é o domínio psicológico sobre a multidão. A
revolução leninista tomava o poder para estabelecer a hegemonia. O gramscismo
conquista a hegemonia para ser levado ao poder suavemente, imperceptivelmente.
Não é preciso dizer que o poder, fundado numa hegemonia prévia, é poder absoluto
e incontestável: domina ao mesmo tempo pela força bruta e pelo consentimento
popular — aquela forma profunda e irrevogável de
consentimento que se assenta na força do hábito, principalmente dos
automatismos mentais adquiridos que uma longa repetição torna inconscientes e
coloca fora do alcance da discussão e da crítica. O governo revolucionário
leninista reprime pela violência as idéias adversas. O gramscismo espera
chegar ao poder quando já não houver mais idéias adversas no repertório mental
do povo.
Que esse negócio é
tremendamente maquiavélico, o próprio Gramsci o reconhecia, mas fazendo disto
um título de glória, já que Maquiavel era um dos seus gurus. Apenas, ele
adaptou Maquiavel às demandas da ideologia socialista, coletivizando o
"Príncipe". Em lugar do condottiere individual que para chegar ao poder
utiliza os expedientes mais repugnantes com a consciência tranquila de quem
está salvando a pátria, Gramsci coloca uma entidade coletiva: a vanguarda
revolucionária. O Partido, em suma, é o novo Príncipe. Como o
sangue-frio dos homens fica mais frio na medida em que eles se sentem apoiados
por uma coletividade, o Novo Príncipe tem uma consciência ainda mais tranquila
que a do antigo. O condottiereda
Renascença não tinha apoio senão de si mesmo, e nas noites frias do palácio
tinha de suportar sozinho os conflitos entre consciência moral e ambição
política, encontrando no patriotismo uma solução de compromisso. No Novo
Príncipe, a produção de analgésicos da consciência é trabalho de equipe, e nas
fileiras de militantes há sempre uma imensa reserva de talentos teóricos que
podem ser convocados para produzir justificações do que quer que seja.
Os intelectuais
desempenham por isso, na estratégia gramsciana, um papel de relevo.
Mas isto não quer dizer que suas idéias sejam importantes em si mesmas, pois,
para Gramsci, a única importância de uma idéia reside no reforço que ela dá, ou
tira, à marcha da revolução. Gramsci divide os intelectuais em dois tipos:
"orgânicos" e "inorgânicos" ( ou, como ele prefere
chamá-los, "tradicionais" ). Estes últimos são uns
esquisitões que, baseados em critérios e valores oriundos de outras épocas, e
sem uma definida ideologia de classe, emitem idéias que, ignoradas pelas
massas, não exercem qualquer influência no processo histórico: acabam indo
parar na lata de lixo do esquecimento, a não ser que tenham a esperteza de
aderir logo a uma das correntes "orgânicas". Intelectuais orgânicos
são aqueles que, com ou sem vinculação formal a movimentos políticos, estão
conscientes de sua posição de classe e não gastam uma palavra sequer que não
seja para elaborar, esclarecer e defender sua ideologia de classe.
Naturalmente, há intelectuais orgânicos "burgueses" e
"proletários". Estes são a nata e o cérebro do Novo Príncipe, mas
aqueles também têm alguma utilidade para a revolução, pois é através deles que
os revolucionários vêm a conhecer a ideologia do inimigo. Gramsci mencionava
como protótipos de intelectuais orgânicos burgueses Benedetto Croce e Giovanni
Gentile: o liberal antifascista e o ministro de Mussolini.
O conceito gramsciano de intelectual funda-se
exclusivamente na sociologia das profissões e, por isto, é bem elástico: há
lugar nele para os contadores, os meirinhos, os funcionários dos Correios, os
locutores esportivos e o pessoal do show
business. Toda essa gente ajuda a elaborar e difundir a ideologia de
classe, e, como elaborar e difundir a ideologia de classe é a única
tarefa intelectual que existe, uma vedette que sacuda as banhas num espetáculo de
protesto pode ser bem mais intelectual do que um filósofo, caso se trate de um
"inorgânico" como por exemplo o autor destas linhas.
Os intelectuais no sentido elástico são
o verdadeiro exército da revolução gramsciana, incumbido de realizar a primeira e
mais decisiva etapa da estratégia, que é a conquista da hegemonia, um processo
longo, complexo e sutil de mutações psicológicas graduais e crescentes, que a
tomada do poder apenas coroa como uma espécie de orgasmo político.
A luta pela hegemonia não se resume apenas ao
confronto formal das ideologias, mas penetra num terreno mais profundo, que
é o daquilo que Gramsci denomina — dando ao termo uma acepção peculiar —
"senso comum". O senso comum é um aglomerado de hábitos e
expectativas, inconscientes ou semiconscientes na maior parte, que governam o
dia-a-dia das pessoas. Ele se expressa, por exemplo, em frases feitas, em giros
verbais típicos, em gestos automáticos, em modos mais ou menos padronizados de
reagir às situações. O conjunto dos conteúdos
do senso comum identifica-se, para o seu portador humano, com a realidade
mesma, embora não constitua de fato senão um recorte bastante parcial e
frequentemente imaginoso. O senso comum não "apreende" a realidade,
mas opera nela ao mesmo tempo uma filtragem e uma montagem, segundo padrões
que, herdados de culturas ancestrais, permanecem ocultos e inconscientes.
Como o que interessa não é tanto a
convicção política expressa, mas o fundo inconsciente do "senso
comum", Gramsci está menos interessado em persuasão racional do que em
influência psicológica, em agir sobre a imaginação e o sentimento. Daí sua
ênfase na educação primária. Seja para formar os futuros "intelectuais
orgânicos", seja simplesmente para predispor o povo aos sentimentos
desejados, é muito importante que a influência comunista atinja sua clientela
quando seus cérebros ainda estão tenros e incapazes de resistência crítica.
O senso comum não coincide com a
ideologia de classe, e é precisamente aí que está o problema. Na maior parte das
pessoas, o senso comum se compõe de uma sopa de elementos heteróclitos colhidos
nas ideologias de várias classes. É por isto que, movido pelo senso comum, um
homem pode agir de maneiras que, objetivamente, contrariam o seu interesse de
classe, como por exemplo quando um proletário vai à missa. Nesta simples rotina
dominical oculta-se uma mistura das mais surpreendentes, onde um valor típico
da cultura feudal-aristocrática, reelaborado e posto a serviço da ideologia
burguesa, aparece transfundido em hábito proletário, graças ao qual um pobre coitado,
acreditando salvar a alma, comete, na realidade, apenas uma grossa sacanagem
contra seus companheiros de classe e contra si mesmo.
Aí é que entra a missão providencial dos
intelectuais. Sua função é precisamente por um fim a essa suruba ideológica, reformando
o senso comum, organizando-o para que se torne coerente com o interesse de
classe respectivo, esclarecendo-o e difundindo-o para que fique cada vez
mais consciente, para que, cada vez mais, o proletário viva, sinta e pense de
acordo com os interesses objetivos da classe proletária e o burguês com os da
classe burguesa. A este estado de perfeita coincidência entre idéias e
interesses de classe, quando realizado numa dada sociedade e cristalizado em
leis que distribuem a cada classe seus direitos e deveres segundo uma clara
delimitação dos respectivos campos ideológicos, Gramsci denomina Estado Ético. É a escalação final dos dois
times, antes de começar o prélio decisivo que levará o Partido ao poder. O
público brasileiro tem ouvido este termo, proferido num contexto de combate à
corrupção e de restauração da moralidade. Mas ele é um termo técnico da
estratégia gramsciana, que designa apenas uma determinada etapa na luta
revolucionária — uma etapa, aliás, bastante avançada, na qual a radicalização do
conflito de interesses de classe prepara o início da etapa orgástica: a
conquista do poder. Que, no caótico senso comum brasileiro, o termo Estado Ético tenha ressonâncias moralizadoras
inteiramente alheias ao seu verdadeiro intuito, mostra apenas que o público
nacional ignora a inspiração diretamente gramsciana do Movimento pela Ética na Política e nem de longe suspeita que seu único
objetivo é politizar a ética, canalizando as aspirações morais mais ou menos
confusas da população de modo a que sirvam a objetivos que nada têm a ver com o
que um cidadão comum entende por moral. O Estado Ético, na verdade, não
apenas é compatível com a total imoralidade, como na verdade a requer, pois
consolida e legitima duas morais antagônicas e inconciliáveis, onde a luta de
classes é colocada acima do bem e do mal e se torna ela mesma o critério moral
supremo. Daí por diante, a mentira, a fraude ou mesmo o homicídio
podem se tornar louváveis, quando cometidos em defesa da "nossa"
classe, ao passo que a decência, a honestidade, a compaixão podem ter algo de
criminoso, caso favoreçam a classe adversária10.
Que o tradicional discurso moralista da burguesia brasileira tenha podido ser
assim usado como arma para desferir um golpe mortal na hegemonia burguesa,
mostra menos a esperteza da esquerda gramsciana do que a estupidez paquidérmica
da nossa classe dominante. Que, por outro lado, os próprios agentes do
gramscismo finjam acreditar no caráter apolítico e puramente higiênico da
campanha moralizante — apaziguando assim os temores daqueles que serão suas
primeiras vítimas — é nada mais que uma expressão da linguagem dupla, inerente
a uma estratégia na qual a camuflagem é tudo. São lições de Antonio Só-a-Cabecinha
Gramsci.
É quase impossível que, a esta altura, a
expressão "inversão de valores" não ocorra ao leitor. Essa inversão
é, de fato, um dos objetivos prioritários da revolução gramsciana, na fase da
luta pela hegemonia. Mas Gramsci é, neste ponto, bastante exigente: não basta derrotar
a ideologia expressa da burguesia; é preciso extirpar, junto com ela, todos
os valores e princípios herdados de civilizações anteriores, que ela de algum
modo incorporou e que se encontram hoje no fundo do senso comum. Trata-se
enfim de uma gigantesca operação de lavagem cerebral, que deve apagar
da mentalidade popular, e sobretudo do fundo inconsciente do senso comum, toda
a herança moral e cultural da humanidade, para substituí-la por princípios
radicalmente novos, fundados no primado da revolução e no que Gramsci denomina
"historicismo absoluto" ( mais adiante explico ).
Uma operação dessa envergadura transcende
infinitamente o plano da mera pregação revolucionária, e abrange mutações
psicológicas de imensa profundidade, que não poderiam ser realizadas de
improviso nem à plena luz do dia. O combate pela hegemonia requer uma
pluralidade de canais de atuação informais e aparentemente desligados de toda
política, através dos quais se possa ir injetando imperceptivelmente na
mentalidade popular toda uma gama de novos sentimentos, de novas reações, de
novas palavras, de novos hábitos, que aos poucos vá mudando de direção o eixo
da conduta.
Daí que Gramsci dê relativamente pouca
importância à pregação revolucionária aberta, mas enfatize muito o valor da
penetração camuflada e sutil. Para a revolução gramsciana vale menos um
orador, um agitador notório, do que um jornalista discreto que, sem tomar
posição explícita, vá delicadamente mudando o teor do noticiário, ou do que
um cineasta cujos filmes, sem qualquer mensagem política ostensiva, afeiçoem o
público a um novo imaginário, gerador de um novo senso comum. Jornalistas,
cineastas, músicos, psicólogos, pedagogos infantis e conselheiros familiares
representam uma tropa de elite do exército gramsciano. Sua atuação
informal penetra fundo nas consciências, sem nenhum intuito político
declarado, e deixa nelas as marcas de novos sentimentos, de novas reações,
de novas atitudes morais que, no momento propício, se integrarão harmoniosamente
na hegemonia comunista11.
Milhões de pequenas alterações vão assim sendo
introduzidas no senso comum, até que o efeito cumulativo se condense numa
repentina mutação global ( uma aplicação da teoria marxista do "salto
qualitativo" que sobrevem ao fim de uma acumulação de mudanças
quantitativas ). Ao esforço sistemático de produzir esse efeito
cumulativo Gramsci denomina, significativamente, "agressão
molecular": a ideologia burguesa não deve ser combatida no campo aberto
dos confrontos ideológicos, mas no terreno discreto do senso comum; não
pelo avanço maciço, mas pela penetração sutil, milímetro a milímetro, cérebro
por cérebro, idéia por idéia, hábito por hábito, reflexo por reflexo.
É claro que a mutação almejada não abrange
somente o terreno das convicções políticas, mas visa principalmente às reações
espontâneas, aos sentimentos de base, às cadeias de reflexos que determinam
inconscientemente a conduta. Condutas sedimentadas no inconsciente
humano há séculos ou milênios devem ser desarraigadas, para ceder lugar a uma
nova constelação de reações. É importante, por exemplo, varrer do
imaginário popular figuras tradicionais de heróis e de santos que expressem
determinados ideais, pois essas figuras estão imantadas de uma força motivadora
que dirige a conduta dos homens num sentido hostil à proposta gramsciana.
Elas devem ser substituídas por um novo panteão de ídolos, no qual, como se viu
acima, Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Lênin, Stálin e obviamente o próprio
Gramsci ocupam os lugares de S. Francisco de Assis, Santa Terezinha do Menino
Jesus e tutti quanti. Gramsci copiou nisto uma idéia de
Augusto Comte, de trocar o calendário dos santos da Igreja por um panteão de heróis
revolucionários. Apenas, os ídolos de Comte eram os da Revolução Francesa:
Gramsci atualizou a folhinha.
Uma lavagem cerebral de tão vasta escala
não poderia, certamente, limitar-se a extirpar da cabeça humana crenças
religiosas, imagens, mitos e sentimentos tradicionais: ela deveria também
estender-se às grandes concepções filosóficas e científicas. A estas,
Gramsci queria destruir pela base, todas de uma vez, para substituí-las por uma
nova cosmovisão inspirada no marxismo, ou antes, numa caricatura
hipertrófica de marxismo que o próprio Marx rejeitaria com desprezo. Pois Marx
considerava-se, sobretudo, o herdeiro de grandes tradições filosóficas como o
aristotelismo, e construiu sua filosofia no intuito de torná-la uma ciência,
uma descrição objetivamente válida das bases do processo histórico. Para
Gramsci, as tradições filosóficas devem ser todas varridas de uma vez, e junto
com elas a distinção entre "verdade" e "falsidade".
Pois Gramsci não é um marxista puro-sangue. Através de seu mestre Antonio
Labriola, ele recebeu uma poderosa influência do pragmatismo, escola para a
qual o conceito tradicional da verdade como uma correspondência entre o
conteúdo do pensamento e um estado de coisas deve ser abandonado em proveito de
uma noção utilitária e meramente operacional. Nesta, "verdade" não
é o que corresponde a um estado objetivo, mas o que pode ter aplicação útil e
eficaz numa situação dada. Enxertando o pragmatismo no marxismo, Labriola e
Gramsci propunham que se jogasse no lixo o conceito de verdade: na nova
cosmovisão, toda atividade intelectual não deveria buscar mais o
conhecimento objetivo, mas sim a mera "adequação" das idéias a um
determinado estado da luta social. A isto Gramsci denominava "historicismo
absoluto". Nesta nova cosmovisão, não haveria lugar para a
distinção — burguesa, segundo Gramsci — entre verdade e mentira. Uma
teoria, por exemplo, não se aceitaria por ser verdadeira, nem se rejeitaria por
falsa, mas dela só se exigiria uma única e decisiva coisa: que fosse
"expressiva" do seu momento histórico, e principalmente das
aspirações da massa revolucionária. Dito de modo mais claro: Gramsci exige que
toda atividade cultural e científica se reduza à mera propaganda política, mais
ou menos disfarçada.
A "filosofia" de Gramsci resolve-se
assim num ceticismo teorético que completa a negação da inteligência pela
sua submissão integral a um apelo de ação prática; ação que, realizada,
resultará em varrer a inteligência da face da Terra, por supressão das
condições que possibilitam o seu exercício: a autonomia da inteligência
individual e a fé na busca da verdade. Substituída a primeira pela
arregimentação de "intelectuais orgânicos" de carteirinha, e a
segunda pela concentração de todas as energias intelectuais no nobre mister da
propaganda revolucionária, quê sobrará da aptidão humana para discernir entre
verdade e mentira?
Gramsci é, em suma, o profeta da
imbecilidade, o guia de hordas de imbecis para quem a verdade é a mentira e a
mentira a verdade. Somente um outro
imbecil como Mussolini podia considerá-lo "uma inteligência
perigosa". O perigo que há nela é o da malícia que obscurece, não o da
inteligência que clareia; e a malícia é a contrafação simiesca da inteligência.
Mas a reação de Mussolini é significativa. Há nela a típica inveja mórbida do
brutamontes de direita pelo intelectual esquerdista, sua sombra junguiana que
ele não compreende e que por isto mesmo lhe parece, por suas habilidades
vistosas, o protótipo mesmo da inteligência. A atração é mútua, como se vê pelo
culto de Nelson Rodrigues entre os esquerdistas que ele achincalhou como
ninguém. Entre a grossura direitista e a pseudo-intelectualidade esquerdista, a
relação é o amor-ódio de um casamento sadomasoquista. Casamento entre le genti dolorose / C'hanno perduto
il ben dello intelletto... Non ragioniam di lor, ma
guarda e passa.
Para quem quer que pense com a própria cabeça,
as teorias de Gramsci não apresentam o menor interesse, tanto quanto não o
apresentam as velhas escolas céticas gregas, das quais o gramscismo é uma
reedição mal atualizada. A refutação do ceticismo é, como se sabe, o
primeiro teste do aprendiz de filósofo. Tal como se refuta o ceticismo — a
negação de toda certeza — pela simples afirmação de que a negação também é
incerta, o gramscismo igualmente não resiste a um confronto consigo mesmo:
tendo negado a veracidade objetiva, ele se reduz a uma "expressão de
aspirações". Tendo reduzido toda a cultura à propaganda, ele próprio se
desmascara como mera propaganda. Não tem sequer a pretensão de ser verdadeiro:
nada pretende provar nem demonstrar; quer apenas seduzir, induzir, conduzir.
O tipo de mentalidade que se interessa por pensamentos desse gênero é
certamente imune a qualquer preocupação de veracidade, mas é movido por uma
ambição insaciável que o faz revolver sem descanso as trevas, numa
"ação" estéril, nervosa, destrutiva, da qual promete em vão fazer
nascer um mundo. Por uma inevitável e trágica compensação, quanto menos
um homem é apto a enxergar o mundo, mais assanhado fica de transformá-lo — de
transformá-lo à imagem e semelhança da sua própria escuridão interior12.
Se nos perguntamos, agora, como foi possível
que uma filosofia assim grosseira alcançasse no Brasil tão vasta audiência a
ponto de inspirar o programa de um partido político, a resposta deve levar em
consideração três aspectos: primeiro, a predisposição da intelectualidade brasileira;
segundo, as condições do momento; terceiro, a natureza mesma dessa filosofia.
Ao longo da nossa história intelectual, somente
três correntes de pensamento lograram exercer uma influência duradoura e
profunda sobre as camadas intelectuais brasileiras: o positivismo de Augusto
Comte, o neotomismo de Leão XIII, o marxismo. O que há de comum entre elas é
que não são propriamente filosofias, mas programas de ação coletiva, destinados
a moldar ou remoldar o mundo segundo as aspirações de suas épocas e de seus
mentores. O positivismo parte da constatação de que a Revolução Francesa,
derrubando as concepções cristãs, deixou sua obra pela metade, na medida em que
não pôs no lugar delas uma nova religião; o positivismo constitui esta nova
religião, com templo, calendário dos santos, ritual e tudo o mais; e as teorias
filosóficas não são senão a sustentação do novo Estado teocrático que Comte
pretende fundar. O neotomismo é a reação que, ao novo Estado teocrático, opõe
um apelo ao retorno do antigo, devidamente revisto e atualizado. Finalmente, o
marxismo é o programa de ação do movimento socialista. Nos três, as idéias, as
teorias, não têm um valor intrínseco mas servem apenas como retaguardas
psicológicas da ação prática. Os três não querem interpretar o mundo, mas
transformá-lo. ( Cabe uma ressalva com relação ao neotomismo: não
confundi-lo com o tomismo, se por esta palavra se entende a filosofia de Sto.
Tomás de Aquino. O tomismo é filosofia no sentido pleno; o neotomismo é, ao
contrário, um movimento cultural e político — ideológico, em suma — votado à
difusão dessa filosofia, tomada como solução pronta de todos os problemas e,
portanto, esvaziada de boa parte de sua substância filosófica. Afinal, tudo o
que é neo-alguma-coisa é, por definição, apenas uma nova casca da qual essa
coisa é o miolo. Observações semelhantes poderiam fazer-se, com reservas,
também do positivismo e do marxismo: em ambos há na raiz algo de filosofia
autêntica, sufocada pelo desenvolvimento hipertrófico de um programa de ação
prática, dela deduzido aos trambolhões. )
Filosofias que recuam da especulação
teorética para a proposição de ações práticas são filosofias da decadência;
marcam as épocas em que os homens já não conseguem compreender o mundo e passam
a agitar-se para escapar de um mundo incompreensível. A sofística nasce, na
Grécia, do fracasso das primeiras especulações cosmológicas de Tales,
Anaximandro, Anaximenes, Parmênides e Heráclito; incapaz de resolver as
contradições entre as teorias, ela transfere o eixo das preocupações humanas
para a vida prática imediata: para a política do dia. Os sofistas são
professores de retórica, que ensinam aos jovens políticos os meios de agir
sobre as consciências. À sofística opõe Sócrates a dialética e o ideal da
demonstração apodíctica que orientará os esforços gregos em direção ao saber
científico. Cinco séculos mais tarde, após o esquecimento das grandes sínteses
teoréticas de Platão e Aristóteles, tornam-se novamente dominantes as escolas
praticistas: os cínicos, os cirenaicos, os megáricos e, em parte, os estóicos.
E assim prossegue a história do pensamento Ocidental, numa pulsação entre o
empenho da compreensão teorética e a queda no ceticismo praticista. O fundo
comum de onde emergem o positivismo, o marxismo e o neotomismo é a dissolução
do racionalismo clássico, levado a um beco sem saída pela crítica kantiana e
que tem no idealismo alemão o seu canto de cisne. Positivismo, marxismo e
neotomismo são as filosofias de uma época que não tem filosofia nenhuma; de uma
época que anseia por transformar o mundo na medida mesma em que é incapaz de
desempenhar o esforço teorético necessário para compreendê-lo.
Num texto clássico — Crise da Filosofia Ocidental ( l874 ) —, o filósofo
russo Vladimir Soloviev previu que a filosofia, como atividade intelectual
essencialmente individual, oposta ao pensamento coletivo da religião e da
ciência, estava em vias de acabar, para ceder lugar a algo de totalmente
diferente. Ele esperava o advento de uma grande síntese, mas o que se viu
foi o advento do "século das ideologias". Ora, o Brasil entra no
curso espiritual do mundo justamente no momento em que Soloviev faz esse
diagnóstico: recebemos maciçamente o impacto das novas ideologias, antes de
termos podido vivenciar a tradição filosófica que as antecedeu. Nosso
contato com as fontes filosóficas da civilização do Ocidente continuou
superficial, ao passo que nos entregávamos de corpo e alma às retóricas
coletivistas. Passado mais de um século, ainda não temos uma boa tradução de
Aristóteles, mas publicamos, já na década de 60, as obras completas de Antonio
Gramsci.
De outro lado, toda tentativa nossa de penetrar
mais fundamente no campo da filosofia mesma ficou limitada pela timidez, pela
insegurança, que nos fazia apegar-nos como crianças à proteção de algum superego
estrangeiro da moda. Cinco décadas de atividade filosofante na USP foram
resumidas no título acachapante do livro recém-publicado de Paulo Arantes: Um Departamento Francês de Ultramar.
Escritórios de importação, representantes autorizados, imitação, pedantismo,
oscilação entre a falsa consciência e a consciência de culpa marcam todos os
nossos esforços filosóficos universitários no sentido de um pensamento
independente. No fim, o intelectual com pretensões filosóficas só encontra
alívio quando desiste delas e recai no pensamento coletivo; quando, abdicando
de interpretar o mundo, se alinha, contrito e obediente, numa das correntes que
professam transformá-lo: as conversões ao catolicismo, ao comunismo e às
ideologias cientificistas originadas do positivismo constituem —
independentemente dos motivos pessoais em cada caso — um melancólico ritornello na história dos fracassos das nossas
ambições filosóficas. A queda no pensamento coletivo é vivenciada como um
retorno da ovelha desgarrada, como uma libertação das culpas, como um
reencontro com a infância perdida. Ao reintegrar-se numa comunidade ideológica
o ex-filósofo arrependido encontra ainda um alívio para o isolamento que cerca
o intelectual no meio subdesenvolvido, e o ingresso no grupo solidário arremeda
a descoberta de um "sentido da vida".
A intelectualidade brasileira estava, por todos
esses fatores, fundamente predisposta ao apelo gramsciano, onde a vida
intelectual deixa de ser o esforço solitário de quem cherche en gémissant, para
tornar-se a participação num "sentido da vida" amparado pela
solidariedade coletiva. O Partido é às vezes chamado por Gramsci
"intelectual coletivo". É o abrigo dos fracos. Aí a ascensão ao
estatuto de intelectual é barateada: já não custa a penosa aquisição de
conhecimentos, a investigação pessoal, a luta direta com as incertezas.
Obtém-se pelo contágio passivo de crenças, de um vocabulário comum, de cacoetes
distintivos13.
A sociedade em torno legitima a paródia: diante dessas marcas exteriores, o
brutamontes de direita acredita piamente estar na presença de um intelectual. A
mídia faz o resto.
O segundo fator, a situação do momento, pode-se
descrever mais ou menos assim: desde a derrota da luta armada, a esquerda
andava em busca de uma estratégia pela qual se orientar. Não sendo capaz de
criar uma nova e não encontrando no repertório mundial uma outra à sua
disposição, ela aderiu a Gramsci quase por automatismo, sonambulicamente,
levada pela carência de opções.
De fato, o comunismo internacional só teve,
ao longo de sua história, um número pequeno de propostas estratégicas. Marx não
apresentou nenhuma. A primeira que fez sucesso foi a de Lênin. Consistia na
formação de uma elite autonomeada, na tomada do poder por um golpe súbito, na
posterior conversão forçada do proletariado a uma causa vencedora que se
apresentava como sua. A proposta de Lênin veio a predominar sobre o socialismo evolucionário de Edward Bernstein, o que provocou o
racha entre os partidos comunistas e a social-democracia, que pregava a tomada
do poder por via pacífica, eleitoral e gradualista. Hoje em dia a
social-democracia é a grande vencedora, dominando toda a Europa; mas, no tempo
de Lênin, sua rejeição pelos comunistas parecia prenunciar o seu fracasso, o
que a queda de governos social-democratas ante o avanço do nazismo
aparentemente confirmou. A terceira grande estratégia foi a de Mao Tsé-tung.
Nas condições da China, não havia um proletariado urbano suficiente sequer para
dar apoio moral à guerra revolucionária, e como, por outro lado, o exército
revolucionário, banido dos grandes centros, acabasse iniciando uma "grande
marcha" pelos campos, o apoio das populações camponesas tornou-se
fundamental, e Mao teorizou a coisa a
posteriori, transformando a revolução proletária em "guerra
revolucionária operário-camponesa" — o que teria provocado engulhos em
Karl Marx, que via nos camponeses uma horda de reacionários incuráveis.
Paralelamente, a submissão do movimento comunista internacional aos interesses
da política exterior soviética deu nascimento a uma quarta estratégia, que
encontrou sua mais clara expressão no Front
Popular, e que consistia fundamentalmente numa aliança dos comunistas com
os "elementos progressistas" de todas as outras correntes,
direitistas inclusive. Aí, a pretexto de antifascismo, até Benedetto Croce
ficou simpático. Finalmente, a quinta estratégia do movimento comunista surgiu
da revolução cubana e da guerra do Vietnã. Sem um autor definido, resultando de
enxertos e mixagens de várias proveniências, ela fundia, num vasto plano de
guerrilhas, o combate rural e o urbano. Uma de suas versões foi a "teoria
foquista" difundida por um doidão de nome Régis Débray, que obteve ampla
audiência na América Latina e propunha, para fazer face ao poder maciço do
imperialismo norte-americano, a formação de variados e simultâneos
"focos" de guerrilhas. A teoria resumia-se no slogan então pixado nos muros de todas as
universidades: "Um, dois, três, muitos Vietnãs". Deu no que deu.
Dentre as muitas mixagens, uma particularmente interessante foi a que fundiu a
estratégia comunista — até aí fundamentalmente proletária e camponesa, ao menos
no nome — com as heresias de Herbert Marcuse, segundo o qual proletários
e camponeses tinham-se integrado ao "sistema" e a revolução não tinha
outros representantes autorizados senão os estudantes e intelectuais, de um
lado, e, de outro, a massa dos miseráveis e marginalizados, o vasto Lumpenproletariat, do qual o
velho Karl Marx aconselhava que os militantes comunistas fugissem como se foge
de um assaltante à mão armada. Um dos resultados locais deste enxerto foi que,
após a derrota da luta armada, os militantes brasileiros presos passaram a
alimentar uma vaga esperança no potencial revolucionário do Lumpen, e, para adiantar o
expediente, trataram de ir ensinando táticas de guerrilha aos bandidos com quem
conviviam no presídio da Ilha Grande. ( Mais tarde ainda, a fusão do
gramscismo com resíduos do marcusismo transformaria num dos pratos de
resistência do cardápio esquerdista a defesa da legitimidade do banditismo como
"protesto social", que, formando polaridade com a onda de
combate moralista aos "colarinhos brancos", estabeleceria uma dupla
moral para o julgamento dos crimes: brando para com o Lumpen, mesmo quando este mata
ou estupra, rigoroso para com os ricos e a classe-média, quando cometem delitos
contra o patrimônio — a mais curiosa inversão já observada na história da
moralidade. )
Nessa resenha das estratégias comunistas, onde
entra o gramscismo? Não entra. Ele ficou de fora, restrito a círculos locais
italianos, e só alcançou maior difusão, mesmo na Itália, após a década de 50,
com a edição das obras completas de Gramsci por Einaudi. A partir de l964, a
facção comunista brasileira ainda fiel à orientação moscovita de aliança com a
burguesia acreditou ver em Gramsci um potencial renovador desta estratégia, com
a qual ele coincide ao menos no que diz respeito ao caráter eminentemente
não-sangrento da luta revolucionária e na cuidadosa exclusão de quaisquer
radicalismos que pudessem estreitar a base das colaborações possíveis.
Porta-voz dessa corrente, o editor Ênio Silveira empreendeu então a publicação
ao menos das principais obras de Gramsci: A
Concepção Dialética da História; Maquiavel,
a Política e o Estado Moderno; Os
Intelectuais e a Organização da Cultura; Literatura
e Vida Nacional e Cartas do Cárcere.
Estas obras foram muito lidas, mas, numa atmosfera
dominada pela obsessão da luta armada, não exerceram influência prática
imediata. Seu potencial ficou retido até a derrota da luta armada, que
provocou, como não poderia deixar de ser, um retorno generalizado às teses do
combate pacífico e aliancista defendidas pelo PC pró-Moscou. O reatamento do
romance entre a esquerda armada e a desarmada deu-se, naturalmente, sobre um
fundo musical orquestrado pelo maestro Antonio Gramsci. Simplesmente não
havia outro capaz de musicar esta cena. A esquerda tornou-se gramsciana meio às
tontas, jogada pelo entrechoque dos acontecimentos, como bolas de bilhar que,
impelindo umas às outras, vão dar todas enfim na caçapa.
Agora, a imprensa brasileira acaba de
descobrir, com um atraso de dez anos, que o programa do PT é gramsciano. Mas,
além de tardia, esta descoberta é inexata: não é só o PT que segue Gramsci:
todos os homens de esquerda neste país o fazem há uma década, sem se dar conta. O gramscismo domina a
atmosfera por simples ausência de outras propostas e também por uma razão
especial: atuando menos no campo do combate ideológico expresso do que no
da conquista do subconsciente, ele se propaga por mero contágio de modas e
cacoetes mentais, de maneira que põe a seu serviço informal uma legião de
pessoas que nunca ouviram falar em Antonio Gramsci. O gramscismo
conta menos com a adesão formal de militantes do que com a propagação epidêmica
de um novo "senso comum". Sua facilidade de arregimentar
colaboradores mais ou menos inconscientes é, por isto, simplesmente prodigiosa.
Eis aí o terceiro fator a que me referi. O
gramscismo é menos uma filosofia do que uma estratégia de ação psicológica,
destinada a predispor o fundo do "senso comum" a aceitar a nova tábua
de critérios proposta pelos comunistas, abandonando, como
"burgueses", valores e princípios milenares.
Que essa "filosofia", para se
propagar, não conte tanto com a persuasão racional como com a eficácia da
penetração sutil no inconsciente das massas, é o que se vê claramente pela sua
ênfase na conquista das mentes infantis — um terreno onde o avanço da esquerda
vem causando um dano incalculável a milhões de crianças brasileiras, usadas
como cobaias de uma desastrosa experiência gramsciana. Que, enfim, essa
corrente haja alcançado sucesso no Brasil, é algo que testemunha a miséria
intelectual de um meio onde os letrados, incapazes de suportar o isolamento,
buscam menos a verdade e o conhecimento do que uma carteirinha de intelectual
orgânico, que lhes garanta o apoio psicológico de um vasto grupo solidário e os
aureole de um ambíguo prestígio aos olhos dos brutamontes de direita, sua mal
disfarçada paixão.
Isso não poderia acontecer senão aqui.
Adendos
1
O número dos adeptos conscientes e declarados
do gramscismo é pequeno, mas isto não impede que ele seja dominante. O
gramscismo não é um partido político, que necessite de militantes inscritos e
eleitores fiéis. É um conjunto de atitudes mentais, que pode estar presente
em quem jamais ouviu falar de Antonio Gramsci, e que coloca o indivíduo numa
posição tal perante o mundo que ele passa a colaborar com a estratégia
gramsciana mesmo sem ter disto a menor consciência. Ninguém entenderá o
gramscismo se não perceber que o seu nível de atuação é muito mais profundo que
o de qualquer estratégia esquerdista concorrente. Nas demais estratégias,
há objetivos políticos determinados, a serviço dos quais se colocam vários
instrumentos, entre eles a propaganda. A propaganda permanece, em todas elas,
um meio perfeitamente distinto dos fins.
Por isto mesmo a atuação do leninismo, ou do maoismo, é sempre delineada e
visível, mesmo quando na clandestinidade. No gramscismo, ao contrário, a
propaganda não é um meio de realizar uma política: ela é a política mesma, a
essência da política, e, mais ainda, a essência de toda atividade mental
humana. O gramscismo transforma em propaganda tudo o que toca, contamina de
objetivos propagandísticos todas as atividades culturais, inclusive as mais
inócuas em aparência. Nele, até simples giros de frase, estilos de vestir ou de
gesticular podem ter valor propagandístico. É esta onipresença da
propaganda que o singulariza e lhe dá uma força que seus adversários,
acostumados a medir a envergadura dos movimentos políticos pelo número de
adeptos formalmente comprometidos, nem de longe podem avaliar.
Um detalhe que assinala bem as diferenças é a
atitude do gramscismo perante a arte engajada. Outras estratégias exigem do
artista que ele imprima às suas obras um sentido político determinado, ou que,
pelo menos, sua visão do mundo, expressa em cada obra, seja coerente com a
interpretação marxista. A literatura engajada do leninismo, do stalinismo ou do
maoismo, é portanto uma coleção de obras das quais cada uma, por si, é uma peça
de propaganda, com valor autônomo. Já no gramscismo o que interessa é apenas
o efeito de conjunto da massa de obras literárias em
circulação. Esse efeito de conjunto deve tender à mudança do senso comum
desejada pelo Partido, pouco importando que cada obra, tomada isoladamente,
nada tenha de marxista ou seja mesmo destituída de qualquer valor
propagandístico.
Graças a isto, o julgamento gramsciano de cada
obra é muito menos rígido e dogmático que o de outras correntes marxistas — o
que muito contribuiu para elevar o seu prestígio entre intelectuais ansiosos
por conciliar seus ideais marxistas com seu desejo pessoal de liberdade.
No gramscismo, qualquer obra literária pode contribuir para a
propaganda marxista, dependendo apenas do contexto em que é divulgada — tal como num jornal
o teor das notícias tomadas individualmente interessa menos do que sua
localização na página, ao lado de outras notícias cujo efeito de conjunto
imprime um novo sentido a cada uma delas.
O objetivo primeiro do gramscismo é
muito amplo e geral em seu escopo: nada de política, nada de pregação
revolucionária, apenas operar um giro de cento e oitenta graus na cosmovisão do
senso comum, mudar os sentimentos morais, as reações de base e o senso das
proporções, sem o confronto ideológico direto que só faria excitar
prematuramente antagonismos indesejáveis.
As mudanças aí operadas podem ser, no entanto,
muito mais profundas e decisivas do que a mera adesão consciente de um
eleitorado às teses comunistas. Mudanças de critério moral, por exemplo, têm
efeitos explosivos. Essas mudanças podem ser induzidas através da imprensa,
sem qualquer ataque frontal e explícito aos critérios admitidos. Um caso que
ilustra isto perfeitamente bem, e que demonstra o alcance da estratégia
gramsciana no Brasil, é o do noticiário sobre corrupção. A campanha pela Ética na Política não surgiu com um intuito moralizador,
mas como uma proposta política antiliberal. Numa entrevista ao Jornal do Brasil, um dos
fundadores da campanha, Herbert de Souza, o Betinho, deixou isso perfeitamente
claro. A campanha surgiu numa reunião de intelectuais de esquerda em busca
de uma fórmula contra Collor, muito antes de que houvesse qualquer denúncia de
corrupção no governo. Mais tarde, estas denúncias vieram a dar à campanha uma
força inesperada, trazendo para ela a adesão de massas de classe-média
moralista que, politicamente, teriam tudo para se opor a qualquer proposta
explicitamente esquerdista. Ora, a campanha exerceu uma influência decisiva
na direção do noticiário nos jornais e na TV. Essa influência foi tal que
introduziu nos julgamentos morais uma mudança profunda. Impressionado pelo
conteúdo escandaloso das notícias, o público nem de longe reparou que a edição
delas subentendia essa mudança, que, conscientemente, ele não aprovaria. Ela
consistiu em fazer com que os crimes contra o patrimônio público parecessem
infinitamente mais graves e revoltantes do que os crimes contra a pessoa humana.
P. C. Farias, um trêmulo estelionatário incapaz de dar um pontapé num cachorro,
era apresentado como um Al Capone, ao mesmo tempo que se minimizava a gravidade
do banditismo armado. Se de um lado jornalistas de esquerda promovem um
ataque maciço aos criminosos de colarinho branco e de outro lado intelectuais
de esquerda lutam para que os chefes de bandos de assassinos armados sejam
reconhecidos como "lideranças populares" legítimas, o efeito
conjugado dessas duas operações é bem nítido: atenuar a gravidade dos crimes
contra a pessoa, quando cometidos pela classe baixa e aproveitáveis
politicamente pelas esquerdas, e enfatizar a dos crimes contra o patrimônio,
quando cometidos por membros da classe dominante. Eis aí a luta de classes
transformada em supremo critério da moral, desbancando o preceito milenar,
arraigado no senso comum, de que a vida é um bem mais sagrado do que o
patrimônio.
Para que essas duas operações ocorram
simultaneamente, produzindo um resultado unificado, não é preciso que emanem de
um comando central organizado. Basta que os intelectuais envolvidos numa e
noutra comunguem ainda que vagamente de um espírito revolucionário gramsciano,
para que, numa espécie de cumplicidade implícita, cada qual realize sua tarefa
e todos os resultados venham a convergir na direção dos fins gramscianos. Isto
não exclui, é claro, a hipótese de um comando unificado, mas, para o sucesso da
estratégia gramsciana, a unidade de comando, ao menos ostensiva, é bastante
dispensável na fase da luta pela hegemonia.
É interessante saber que, na
Constituição do Estado soviético, o homicídio doloso era punido com apenas dez
anos de cadeia e os crimes contra a administração pública sujeitavam o culpado
à pena de morte. Nem poderia ser de outro modo, dado o pouco valor que, na
perspectiva marxista, tem a vida individual quando não posta a serviço da
revolução. Ora, o noticiário sobre corrupção conseguiu introduzir na mente
brasileira o hábito de julgar as coisas segundo uma escala moral soviética; e o
fez com muito mais eficiência do que lograria em anos e anos de debates
explícitos. Uma vez explicitada, essa mudança seria rejeitada com horror
por um povo em que ainda são vivos, no fundo, os sentimentos cristãos. Introduzida
por baixo, como critério subjacente, ela penetra às ocultas no senso comum e o
perverte até a raiz, preparando-o para aceitar passivamente, no futuro,
aberrações maiores ainda, que venham a ser impostas por um Estado socialista14.
A atuação espontânea, aparentemente inconexa,
de milhares de intelectuais — no sentido gramsciano — em setores distintos da
vida pública, pode ser facilmente dirigida para onde o deseja a revolução
gramsciana, não sendo necessário para isto nem mesmo um oculto Comitê Central
de super-cérebros a comandar o conjunto da operação. Basta que uma cumplicidade
inicial se estabeleça entre certos grupos, para que, sobretudo na ausência de
qualquer confronto crítico com outras correntes, o gramscismo avance como sobre
trilhos azeitados, na estrada que leva à conquista da hegemonia. Ele já
penetrou fundo, por esse caminho, na mentalidade brasileira. Quando um
partido político assume publicamente sua identidade gramsciana, é que a fase do
combate informal — a decisiva — já está para terminar, pois seus resultados
foram atingidos. Vai começar a luta pelo poder. O que marca esta nova fase
é que todos os adversários ideológicos já foram vencidos ou estão moribundos;
nenhum outro discurso ideológico se opõe ao gramscismo, e os adversários
políticos que restam lhe dão ainda maior reforço, na medida em que, não
possuindo alternativa mental, pensam dentro dos quadros conceituais e valorativos
demarcados por ele e só podem combatê-lo em nome dele mesmo. Isto é hegemonia.
2
Gramsci jura que é leninista, mas como ele
atribui a Lênin algumas idéias de sua própria invenção das quais Lênin nunca
ouviu falar, as relações entre gramscismo e leninismo são um abacaxi que os
estudiosos buscam descascar revirando os textos com uma paciência de exegetas
católicos. Uma dessas idéias é a de "hegemonia", central no
gramscismo. Gramsci diz que ela foi a "maior contribuição de Lênin" à
estratégia marxista, mas o conceito de hegemonia não aparece em parte alguma
dos escritos de Lênin. Alguns exegetas procuraram resolver o enigma
identificando a hegemonia com a ditadura do proletariado, mas isto não dá muito
certo porque Gramsci diz que uma classe só implanta uma ditadura quando não tem a hegemonia. As relações entre Gramsci
e Marx também são embrulhadas, como se vê no uso do termo "sociedade
civil": para Marx, sociedade civil é o termo oposto e complementar do
"Estado", e, logo, se identifica com o reino das relações econômicas,
ou infra-estrutura. Em Gramsci, a sociedade civil, somada à sociedade política
ou Estado, compõe a superestrutura que se assenta sobre a base econômica.
Essas e outras dificuldades de interpretação do
pensamento de Gramsci decorrem, em parte, do caráter fragmentário e disperso
dos seus escritos. Talvez elas possam ser resolvidas, mas o que é realmente
espantoso é que, alguns anos após revelada ao mundo a maçaroca dos textos
gramscianos, e antes mesmo que algum sério exame produzisse uma interpretação
aceitável do seu sentido, ela já fosse adotada como norma diretiva por várias
organizações, começando a produzir efeitos práticos sobre os quais ninguém,
nessas condições, poderia ter o mínimo controle. Essa adesão apressada a uma
idéia que mal se compreendeu assinala uma tremenda irresponsabilidade política,
um desejo ávido de atuar sobre a sociedade humana sem medir as consequências. É
claro que ninguém adere a Gramsci com outro propósito que não o de implantar o
comunismo em alguma parte do mundo. Mas, sendo o gramscismo um
pensamento obscuro e às vezes incompreensível, não há nenhum motivo para crer
que sua aplicação deva produzir nem mesmo esse resultado, lamentável o quanto
seja. Pode acontecer, por exemplo, que a estratégia gramsciana não gere
outro efeito além de tornar os burgueses ateus, retirando os freios que a
religião impunha à sua cobiça e ao seu maquiavelismo. Algo muito
parecido aconteceu na própria terra de Gramsci: é impossível não haver
conexão entre a decadência da fé católica e a transformação da Itália numa
Sodoma capitalista. A nova cultura materialista e gramsciana que
dominou a atmosfera intelectual italiana desde a década de 60 muito contribuiu
para esse resultado; apenas, não se vê que vantagem os comunistas puderam
tirar disso. Os esquerdistas brasileiros deveriam pensar na
experiência italiana antes de atirar-se a aventuras gramscianas que, na
educação como na política, podem levar a resultados tão confusos quanto as
idéias que as inspiram.
3
O termo "Estado ético" é ele
mesmo um dos primores de ambiguidade que se encontram na mixórdia gramsciana. Ora ele designa o
Estado comunista, ora o Estado capitalista avançado, ora qualquer Estado. De
modo mais geral, Gramsci denomina "ético" todo Estado que procure
elevar a psique e a moral de seus cidadãos ao nível atingido pelo
"desenvolvimento das forças produtivas", subentendendo-se que o
Estado comunista faz isto melhor do que ninguém. A idéia é
intrinsecamente imoral: consiste em submeter a moral às exigências da economia.
Se, por exemplo, um determinado estágio do "desenvolvimento das forças
produtivas" requer que todos os habitantes de uma região sejam removidos
para o outro extremo do país, como aconteceu muitas vezes na União Soviética,
torna-se "ética" a conduta de um garoto que denuncie o pai às
autoridades por tentar fugir para uma cidade próxima. A asquerosa admiração
que os brasileiros vêm demonstrando nos últimos tempos pelos irmãos que delatam
irmãos, pelas esposas que delatam maridos, é índice de uma nova moralidade,
inspirada em valores gramscianos. Não há dúvida de que o novo critério é
"ético" no sentido gramsciano, isto é, economicamente útil, já que a
delação generalizada de pais, irmãos, maridos e amantes pode ressarcir alguns
prejuízos sofridos pelo Estado. Mas isto não atenua sua imoralidade intrínseca.
Em cursos e conferências, venho falando do
gramscismo petista desde 1987 pelo menos, para platéias em que não faltaram jornalistas.
Mas a imprensa brasileira, refratária a tudo quanto seja novo, só em 1994
informou ao público a inspiração gramsciana do petismo, quando ela não era mais
uma tendência latente e já se havia externalizado no programa oficial do
partido. O primeiro a dar o alarma foi Gilberto Dimenstein, na Folha de
S. Paulo, logo após a publicação deste livro que aliás nem sei se ele leu;
mas limitava-se a mencionar o nome do ideólogo italiano, sem nada dizer do
conteúdo de suas idéias. Não teve a menor repercussão. Mais tarde li duas ou
três frases alusivas a Gramsci, em outros jornais e em Veja. Tudo muito sumário, num
tom de quem contasse com a compreensão de uma platéia versadíssima em
gramscismo. É o velho jogo-de-cena do histrionismo brasileiro: dar por pressuposto
que o ouvinte sabe do que estamos falando é um modo de induzi-lo a crer que
sabemos do que falamos. Na verdade, fora dos círculos do petismo letrado, só
sabem de Gramsci uns quantos acadêmicos, entre os quais Oliveiros da Silva
Ferreira, que defendeu uma tese sobre o assunto numa USP carregada de odores
gramscianos, na década de 60. Gramsci continua esotérico, lido só em família, a
salvo de qualquer crítica exceto amigável — uma crítica dos meios, conivente
com os fins, numa atmosfera de culto e devoção que raia a pura e simples
babaquice. Mas pelo mundo civilizado circulam críticas devastadoras, que
provavelmente jamais chegarão ao conhecimento do público brasileiro. Assinalo
as de Roger Scruton16 e Alfredo Sáenz17,
que tomam o assunto por lados bem diferentes daquele que abordo neste livro,
mas chegam a conclusões não menos reprobatórias.
Devo apontar como exceção notável, ainda que
tardia, um artigo de Márcio Moreira Alves18.
Ele resgata parcialmente a honra da imprensa brasileira, mostrando que há nela
pelo menos um cérebro capaz de saber de Gramsci algo mais do que o nome e pelo
menos um repórter que não foge da notícia. Ele explica em linhas gerais a
estratégia gramsciana e o estado presente de sua aplicação pela liderança
petista, levando à conclusão de que, em vez de criar uma democracia como o
partido promete, ela vai produzir aqui a ditadura de uma capelinha de
intelectuais. É lamentável, apenas, que no reduzido espaço de sua coluna o
sempre surpreendente Moreira Alves não pudesse abranger assunto tão vasto senão
em abreviatura pesadamente técnica, de difícil assimilação pelo público. O Globo deveria dar-lhe duas páginas inteiras
para trocar em miúdos os ensinamentos ali contidos, talvez os mais importantes
e urgentes que a imprensa brasileira transmitiu ao público nos últimos anos.
Particularmente oportuna é ali a observação de
que o programa mesmo do PT reconhece — oficialmente, por assim dizer — a
hegemonia da esquerda, principalmente no campo cultural mas também na política,
na medida em que proclama o ingresso atual do Brasil num novo "bloco
histórico" ( sistema cerrado de relações entre a economia e a
superestrutura cultural, moral e jurídica ). É digna da maior
atenção, no programa do PT, a parte referente à "revolução passiva".
A passagem ao novo "bloco histórico" será feita pela elite ativista
com base no "consenso passivo" da população. Isto quer dizer,
sumariamente, que o povo não precisará manifestar seu apoio ao programa do PT
para que este se sinta autorizado a promover a transformação revolucionária da
sociedade. A simples ausência de reação hostil, para não dizer de rebelião,
será interpretada como aprovação popular: quem cala consente, em suma. A
proposta é de um cinismo descarado. Ela investe o PT do direito divino de agir
em nome do povo sem precisar ouvi-lo, já que o silêncio se tornará aplauso.
Durante sete décadas o silêncio de um povo oprimido foi interpretado como
"aprovação passiva" pelo governo da URSS. Em linguagem técnica
mas incisiva, Márcio Moreira Alves mostra que por esse caminho não se pode
chegar a uma democracia. Discordo dele só num ponto: ele acha que a estratégia
petista é uma traição aos ideais de Gramsci, e eu estou seguro de que ela é a
mais pura encarnação do gramscismo universal19.
O mais lamentável em toda essa história
é que a massa dos militantes do PT não tem a menor condição intelectual de
compreender as sutilezas da estratégia gramsciana, e vai se deixando conduzir
sonambulicamente pelos guias iluminados, sem fazer perguntas quanto à
verdadeira meta da jornada.
NOTAS
10.
Para Karl Marx, aqueles que captam o sentido do
movimento da História e representam as "forças progressistas" ficam ipso factoliberados
de qualquer dever com a "moral abstrata" da burguesia; seu único
dever é acelerar o devir histórico em direção ao socialismo, pouco importando
os meios. Baseado nesse princípio, Lênin codificou a moral partidária, onde o
único dever é servir ao partido. Esta moral, por sua vez, deu origem ao Direito
soviético, que colocava acima dos direitos humanos elementares os deveres para
com o Estado revolucionário. A delação de corruptos ou traidores, por exemplo,
era na União Soviética uma obrigação básica do cidadão. Mas não é só na teoria
que o comunismo é imoral. No Estado socialista, todos são funcionários
públicos, e basta isto para que a corrupção se torne institucional. Na União
Soviética ninguém conseguia tirar um documento ou consertar uma linha
telefônica sem soltar propinas: ao socializar a economia, socializa-se a
corrupção. A desonestidade desce das camadas dominantes para corromper todo o
povo. O mesmo aconteceu na China, país que ademais se notabilizou por ser o
maior distribuidor de tóxicos deste planeta. A justificativa, na época, era que
os tóxicos enfraqueceriam a "juventude burguesa" e facilitariam o
avanço do socialismo, sendo, portanto, benéficos ao progresso humano. As drogas
só se tornaram um problema de escala mundial graças ao comunismo chinês, que,
com isto, se tornou culpado de um crime de genocídio pelo qual, até hoje,
ninguém teve coragem de acusá-lo.
Ainda segundo a moral comunista, as pessoas profundamente
apegadas aos ideais burgueses são doentes incorrigíveis, devendo por isto ser
isoladas ou exterminadas. Sessenta milhões de pessoas foram mortas, na União
Soviética, em nome da reedificação da cultura e da personalidade. No Camboja, o
genocídio foi adotado como procedimento normal e legítimo.
Foram os comunistas que, com base nas descobertas de Pavlov,
desenvolveram o sistema de lavagem cerebral, para despersonalizar os prisioneiros e
levá-los a confessar crimes que não haviam cometido.
Foi também o comunismo que instituiu o sistema de romper sem
aviso prévio acordos internacionais, tratados de paz e compromissos comerciais,
institucionalizando no mundo o do gangsterismo como norma de conduta
diplomática, depois copiado por Hitler. Campos de concentração e de extermínio
são também uma invenção comunista imitada pelo nazismo.
O governo comunista da URSS criou o maior sistema de
espionagem interna de que se teve notícia na história humana, a KGB, e por meio
dela tornou-se o primeiro governo essencialmente policial do mundo.
O comunismo foi ainda o primeiro regime a instituir em escala
continental a mentira sistemática como padrão de ensino público, e a
falsificação da ciência como meio de controle da opinião.
Que tudo isso possa ser um enorme tecido de coincidências,
que não haja nenhuma conexão intrínseca entre todos esses horrores e a
ideologia socialista, é somente mais uma mentira propagada por intelectuais
ativistas cuja formação marxista os tornou para sempre cínicos, hipócritas e
incapazes de qualquer sentimento moral.
A participação intensa de intelectuais marxistas na campanha
pela "Ética na Política" é um sinal seguro de que essa campanha não
moralizará a política, mas apenas politizará a ética, tornando-a uma serva de
objetivos intrinsecamente imorais. Quem viver, verá. [ N. da 2ª ed.. ] Voltar
11.
Exemplo característico da mutação da escala
moral é a campanha contra a Aids. É mais do que evidente que a liberação sexual
favorece a disseminação dessa doença. No entanto, jornalistas e agitadores
culturais do mundo todo estão levando as pessoas a crer que o conservadorismo
moral, particularmente católico, é o culpado pela difusão da Aids, na medida em
que se opõe à distribuição de camisinhas. Fazer de um efeito desastroso da
liberação sexual um argumento contra a moral conservadora é um truque sofístico
que só ocorreria a mentalidades inteiramente perversas. Os liberacionistas dão
com isso um exemplo horrendo de insensibilidade moral, de hipocrisia cínica.
Ocultar suas próprias culpas por trás da acusação lançada a um inocente é um
dos comportamentos mais baixos que se podem conceber. Por outro lado, do ponto
de vista meramente prático, a esperança no poder das camisinhas é uma
insensatez, para dizer o mínimo. Junto com ela vem a recusa de enxergar a
parcela de razão que têm os religiosos nessa questão. Qual a taxa de Aids entre
católicos praticantes, evangélicos, monges budistas, judeus ortodoxos,
mussulmanos devotos? É praticamente nula. Uma bela campanha moralista, por
desagradável que fosse ( e para mim também o seria, pois pessoalmente sou mais
pela liberação ), faria mais para conter o avanço da Aids do que a distribuição
de trilhões de camisinhas. Neste momento da história, qualquer campanha
moralista, por boboca que nos pareça, é um empreendimento digno de louvor, uma
contribuição à salvação da espécie humana. Se amanhã ou depois a população do
Brasil aderir em peso aos Pentecostais, ao Bispo Macedo ou à Renovação
Carismática, a Aids estará vencida entre nós. Isto é uma obviedade que só os
intelectuais não enxergam. [ N. da 2ª ed. ] Voltar
12.
Querem um retrato moral de Antonio Gramsci?
Podem encontrá-lo numa das fábulas que, da prisão, ele remetia para que fossem
lidas à sua filha:
"Enquanto um menino dormia, um rato bebeu o leite que a
mãe lhe havia preparado. Quando o menino acordou, pôs-se a chorar porque não
encontrou o leite; a mãe, por seu lado, também chora. O rato tem remorsos, bate
a cabeça contra a parede, mas finalmente percebe que aquilo de nada serve.
Então, corre à cabra para conseguir mais leite. Mas a cabra diz ao rato que só
lhe dará leite se tiver capim para comer. Então, o rato vai até o campo, mas o
campo é árido e não pode dar capim se não for molhado antes. O rato vai à
fonte, mas esta foi destruída pela guerra e a água se perde; é preciso que o
pedreiro conserte a fonte. O pedreiro precisa das pedras, que o rato vai buscar
numa montanha, mas a montanha está toda desmatada pelos especuladores. O rato
conta toda a história e promete que o menino, quando crescer, plantará novas
árvores na montanha. E assim a montanha dará as pedras, o pedreiro refará a
fonte, a fonte dará a água, o campo dará o capim, a cabra fornecerá o leite e,
finalmente, o menino poderá comer e não chorará mais." ( Laurana Lajolo, Antonio Gramsci. Uma
Vida, trad. Carlos Nelson Coutinho, São Paulo,
Brasiliense, 1982. )
As fábulas sempre foram, ao longo dos tempos, um depósito de
símbolos portadores de um ensinamento espiritual. Por meio delas, a criança
tinha o acesso ao conhecimento das possibilidades humanas mais elevadas, e este
conhecimento, tanto mais potente porque cristalizado numa linguagem mágica e
alusiva, bastava para defender sua alma da total imersão na banalidade
esterilizante do meio adulto. Elas representavam, assim, o fio de continuidade
do núcleo mais puro da alma humana no meio da agitação alienante da
"História".
Gramsci consegue aqui inverter a função da fábula,
transformando-a num meio de ensinar à criança, com realismo literal, o processo
de produção capitalista - da matéria-prima à comercialização - e para lhe
inocular, de um só golpe, o ódio aos malditos especuladores e a esperança na
futura utopia socialista, onde "tudo será mais belo".
O que Gramsci fez com sua própria filha, por que não o faria
com os filhos dos outros? É preciso que a pregação comunista atinja os cérebros
enquanto ainda estão tenros e indefesos, e, fechando-lhes o acesso a toda
concepção de ordem espiritual, os encerre para sempre no círculo de ferro da
mundanidade "histórica" ( v. adiante, Cap. III ).
Gramsci revela aqui toda a mesquinhez da sua concepção do
mundo, onde a economia é não só o motor da História, mas o limite final do
horizonte humano.
Que um tipo desses possa ser objeto de culto sentimentalista
entre os militantes, isto mostra que a ideologia comunista traz em seu bojo uma
perversão dos sentimentos, uma mutilação da alma humana. É preciso muito agitprop para fazer de
Gramsci um personagem digno de admiração. Mas entre militantes esquerdistas já
vi sujeitos capazes de proferir toda sorte de blasfêmias contra a religião
alheia terem tremeliques de emoção religiosa ante o santo nome de Antônio
Gramsci. Essa sentimentalidade pseudo-religiosa não é um excesso de zelo: é a
essência mesma do gramscismo, que beatifica o mundano para abafar e perverter o
impulso religioso e transformá-lo em devoção partidária. Querem ver no que dá?
Narrando a morte de Gramsci, a hagiógrafa Laurana Lajolo ( op. cit., p. 148 )
termina falando dos cadernos "nos quais Antônio Gramsci havia depositado,
em sentido laico e historicista, a imortalidade da sua alma, a possibilidade de
sobrevivência intelectual na história". Só um gramsciano roxo é incapaz de
enxergar o ridículo que há em teologizar a esse ponto a fama literária. Se a
idéia valesse, os imortais da Academia já não seriam imortais figuradamente,
mas literalmente - e nossas preces pela vida eterna não deveriam dirigir-se a
Jesus Cristo, e sim à pessoa do sr. Josué Montello. [ N. da 2ª ed. ] Voltar
13.
O fenômeno da pseudo-intelectualidade é um dos
traços mais marcantes do chamado Terceiro Mundo, e é ela, não o proletariado ou
as massas famintas, a base social dos movimentos revolucionários. Eric Hoffer,
que examinou o assunto com mais seriedade do que ninguém, explica esse fenômeno
pelas condições peculiares em que, nessa parte do globo, se deu, com a reforma
modernizadora empreendida pelas potências Ocidentais, a quebra do modo de vida
comunitário-patriarcal. Escrevendo no começo da década de 50, e mencionando
nomeadamente a Ásia, ele fala em termos que se aplicam com precisão ao Brasil
de hoje: "Em toda a Ásia, antes do advento da influência Ocidental, o
indivíduo estava integrado num grupo mais ou menos compacto - a família patriarcal,
o clã ou a tribo. Do nascimento à morte, sentia-se parte de um todo eterno e
contínuo. Jamais se sentia sozinho, jamais se sentia perdido, jamais se via
como um pedaço de vida flutuando numa eternidade de nada. A influência
Ocidental [...] destruiu e corroeu a maneira tradicional de vida. O resultado
não foi a emancipação, e sim o isolamento e o desamparo. Um indivíduo imaturo
foi arrancado do calor e segurança de uma existência coletiva e deixado órfão
num mundo frio.
"O indivíduo recém-surgido pode atingir algum grau de
estabilidade [...] somente quanto lhe oferecem abundantes oportunidades de
auto-afirmação ou auto-realização. Somente assim ele poderá adquirir a
autoconfiança e auto-estima [...]. Quando a autoconfiança e a auto-estima
parecem inatingíveis, o indivíduo em formação torna-se uma entidade altamente
explosiva. Tenta obter uma impressão de confiança e de valor abraçando alguma
verdade absoluta e identificando-se com os atos espetaculares de um líder ou de
algum corpo coletivo - seja uma nação, uma congregação, um partido ou um
movimento de massa.
"É necessário uma rara constelação de circunstâncias
para que a transição de uma existência comunitária para a individual siga o seu
curso sem ser desviada ou invertida por complicações catastróficas. [...] O
indivíduo em surgimento na Europa, no fim da Idade Média, enxergou panoramas
deslumbrantes de novos continentes, de novas rotas de comércio, de novos
conhecimentos. O ar estava carregado de novas expectativas e havia a sensação
de que o indivíduo por si só era capaz de qualquer empreendimento. A mudança
[...] produziu uma explosão de vitalidade [...].
"Essa excepcional combinação de circunstâncias não
estava presente na Ásia. Ali, ao invés de ser estimulado por perspectivas
deslumbrantes e oportunidades jamais sonhadas, [ o indivíduo ] se viu
enfrentando uma vida estagnada, debilitada, e extraordinariamente pobre. É um
mundo onde a vida humana é a coisa mais abundante e barata. É, além disso, um
mundo analfabeto. [...]
"A minoria letrada é, assim, impedida de adquirir um
senso de utilidade e de valor tomando parte no mundo do trabalho, e é condenada
a uma vida de pseudo-intelectuais tagarelas e cheios de pose.
"O extremista da Ásia é hoje geralmente um homem de
certa instrução que tem horror ao trabalho manual e um ódio mortal pela ordem
social que lhe nega uma posição de comando. Todo estudante, todo escriturário e
funcionário menos graduado se sente como um escolhido. É essa gente palavrosa e
fútil que dá o tom na Ásia. Vivendo vidas estéreis e inúteis, não possuem
autoconfiança e auto-respeito, e anseiam pela ilusão de peso e importância.
"É principalmente a esses pseudo-intelectuais que a
Rússia comunista dirige seu apelo. Traz-lhes a promessa de tornarem-se membros
de uma elite governante, a perspectiva de terem ação no processo histórico e,
com seu falatório doutrinário, proporciona-lhes uma sensação de peso e
profundidade." ( Eric Hoffer, The Ordeal of Change, London, Sidgwick & Jackson, 1952;
trad. brasileira de Sylvia Jatobá, O Intelectual e as Massas, Rio, Lidador,
1969, pp. 16 ss..) É a descrição exata da liderança petista. [ N. da 2a. ed.. ] Voltar
14.
A proposta do PT, de dar prêmios aos cidadãos
que delatem casos de corrupção, seria repelida com horror se apresentada uns
anos atrás, quando a corrupção não era menor mas os sentimentos morais da
população brasileira conservavam uns vestígios de normalidade porque ainda não
tinham sido corrompidos pela "campanha da Ética". Hoje, é aceita com
aplausos dos que não percebem nela aquilo que ela verdadeiramente é: a
instauração do Estado policial em nome da moralidade, a corrupção de todas as
relações humanas pela universalização da suspeita, o incentivo à espionagem de
todos contra todos. Para que o Estado não perca dinheiro, será preciso que
todos os brasileiros percam a dignidade e o respeito próprio, transformando-se
em alcagüetes premiados. [ N. da 2ª ed. ] Voltar
15. Escrito
para a 2a. edição. Voltar
16. Roger Scruton, Thinkers of the New Left, Harlow ( Essex ), Longman, 1985. [ N.
da 2a. ed. ] Voltar
17.
Alfredo Sáenz,
s. J., "La estratégia ateísta de Antonio Gramsci", emAteísmo y
Vigencia del Pensamiento Católico. Actas del Cuarto Congreso Catolico Argentino
de Filosofía, Córdoba, Asociación Católica Interamericana de Filosofía,
1988, pp. 355-366. [ N. da 2a. ed.. ]Voltar
18.
"A revolução passiva", O Globo, 28 de
junho de 1994. Voltar
19.
Há pensadores de quem a gente diverge com o
maior respeito. Entre os marxistas, esse é para mim o caso de um Adorno, de um
Horkheimer, de um Marcuse, ou mesmo de um Lukács. Mas por Gramsci, como o
leitor já deve ter percebido, não consigo sentir o menor respeito, porque ele
não respeita nada e se porta ante dois milênios de civilização com a petulância
dos ignorantes. Acho uma babaquice ter ante um escritor qualquer uma reverência
maior do que a que ele tem ante Moisés, Jesus Cristo ou a Virgem Maria. Mas a
atmosfera de culto em torno do nome de Antonio Gramsci é tão carregada de zelo,
que acaba inibindo por contágio inconsciente até os melhores cérebros,
impedindo-os de chegar a uma visão objetiva e crítica do pensamento de Gramsci.
[ N. da 2a. ed. ] Voltar