Rússia: polêmica sobre o crucifixo
Moscou, 07 abr (RV) - Continua na Rússia a polêmica entre a Igreja Ortodoxa e as organizações de direitos humanos em relação à exposição do crucifixo em escritórios e locais públicos. Amparado pela decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que recentemente declarou que não reconhece qualquer violação dos direitos humanos na colocação de crucifixos nas salas de aula, o chefe do Departamento do Patriarcado de Moscou para as relações entre a Igreja e a sociedade, Vsevolod Chaple, lançou um apelo à comunidade dos fiéis, para que seja mais corajosa em mostrar a sua fé num momento em que a Rússia ainda se recupera de 70 anos de ateísmo de Estado.
Alguns ativistas se opõem, destaca a agência AsiaNews, entre eles, Lev Ponomarev, líder do Movimento para os Direitos Humanos, que atacou a interferência do Patriarcado na sociedade civil e recorda como na Rússia, Igreja e Estado são separados. Ponomarev, embora tenha que admitir que ninguém pode impedir a quem se professa ortodoxo de pendurar uma cruz, afirma porém que o debate só vai contribuir para dividir ainda mais a sociedade. (SP)
(Fonte: Rádio Vaticano – 07/04/2011)
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Comentário
No dia 3 de novembro de 2009 a Corte Europeia de Direitos Humanos determinou que a Itália retirasse o crucifixo de todas as instituições públicas de ensino do país. A decisão se baseou no argumento segundo o qual a presença do crucifixo seria uma violação à liberdade de religião dos alunos e iria de encontro ao princípio da laicidade do Estado. A reação dos cidadãos italianos contrariamente à bizarra decisão foi exemplar, tendo sido noticiada em todo o mundo, com ricas manifestações onde foram destacados os equívocos decorrentes de posicionamentos que ignoram os valores do cristianismo e de seu papel na construção dos fundamentos dos direitos e das garantias que devem tutelar o ser humano.
Recentemente (em 21/03/2011), o mesmo tribunal modificou seu entendimento ao reconhecer que a colocação de crucifixos nas salas de aula não representa qualquer violação aos direitos humanos. A última decisão do tribunal – em caráter definitivo – é decorrente de apelação apresentado pela Itália, que argumentou ser o crucifixo não apenas um símbolo religioso, mas “representa os princípios e valores que formaram os alicerces da democracia e da civilização ocidental, e que sua presença nas classes é justificável a este respeito”. O tribunal internacional, para não ser desmoralizado, recuou. Parabéns ao povo italiano.
Aqui no Brasil, talvez estimulado pela primeira decisão do tribunal europeu, o governo federal, no final de 2009, publicou o Decreto no 7.037, de 21/12/2009, que aprovou o Programa Nacional de “Direitos Humanos”, cujo objetivo estratégico VI, relativo ao “respeito às diferentes crenças, liberdade de culto e garantia da laicidade do Estado”, estabelecia, na alínea “c” das ações programáticas ali delineadas, “desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União”. Felizmente, graças à forte oposição da Igreja Católica, o mórbido preceito foi revogado pelo Decreto nº 7.177, de 12/05/2010. Parabéns ao povo brasileiro.
Aliás, conforme já comentado neste veículo (ver tópico sobre o V Mandamento da Lei de Deus), o Decreto nº 7.177 também alterou a redação da alínea "g" do objetivo estratégico III do Decreto 7.037, cuja diretriz era a de “apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”. A nova redação do preceito em tela é a seguinte: “considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde”.
Finalmente, sobre a laicidade e o uso de símbolos religiosos, transcrevo, abaixo, um breve e ótimo artigo relacionado ao tema. Sugiro, ainda, a leitura do artigo intitulado: O uso de crucifixos e bíblias em prédios públicos à luz da Constituição Federal, disponível no seguinte link: http://jus.uol.com.br/revista/texto/12686/o-uso-de-crucifixos-e-biblias-em-predios-publicos-a-luz-da-constituicao-federal.
Este último é mais extenso e apresenta maior fundamentação teórica.
Fiquem com Deus,
Francisco José
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Estado laico não é estado ateu e pagão
(Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito de Direito Econômico da Universidade Mackenzie, presidente da Academia Internacional de Direito e Economia e do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo)
Desde a Constituição do Império de 1824, os textos magnos pátrios consagram o princípio da liberdade religiosa, o que se dá amplamente a partir da Carta Republicana de 1891. O Estado Laico, longe de ser um Estado Ateu — que nega a existência de Deus — protege a liberdade de consciência e de crença de seus cidadãos, permitindo a coexistência de vários credos. Aliás, é princípio fundamental do cristianismo e muito precioso aos católicos, que compreendem a parcela maior dos brasileiros, o profundo respeito à liberdade religiosa de cada um, como bem se afirma na declaração "Dignitatis Humanae", do Concílio Vaticano II.
As Constituições fazem expressa menção, em seus preâmbulos, à confiança depositada em Deus (1934), colocando-se sob sua proteção (1946), ou afirmando o amparo divino, como pouco humildemente se fez em 1988. Esta percepção da importância de Deus como fundamento de uma sociedade fraterna radica na indissociável conexão entre a história, a cultura e o próprio Criador, o que é imprescindível para a elaboração de políticas públicas que não colidam com a liberdade religiosa e nem desrespeitem a profunda religiosidade da nação brasileira.
Daí a enorme distância entre o pluralismo religioso do Estado Laico e um Estado Ateu ou Pagão que nega a existência de Deus ou prega a divinização do ocupante do poder. Nero lançou no ano 64 uma feroz perseguição aos cristãos, que se seguiu ao longo do século II para a preservação do culto pagão aos imperadores. Hitler, com políticas de extermínio do povo judeu — e também de cristãos, ciganos e deficientes físicos — sustentou um Estado Ateu em que o Füher era o senhor supremo da vida e da morte.
Por outro lado, Bento XVI, o Papa do Amor e da Paz da encíclica "Deus Caritas Est", ao abrir a V CELAM, em Aparecida, considerando "a realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo", afirmou:
"O que é esta «realidade»? O que é o real? São «realidade» só os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos? Aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes no último século, erro destrutivo, como demonstram os resultados tanto dos sistemas marxistas como inclusive dos capitalistas. Falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade fundante, e por isso decisiva, que é Deus. Quem exclui Deus de seu horizonte falsifica o conceito de «realidade» e, em conseqüência, só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas. A primeira afirmação fundamental é, pois, a seguinte: Só quem reconhece Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano. A verdade dessa tese é evidente ante o fracasso de todos os sistemas que colocam Deus entre parênteses." [grifei e destaquei]
Para se evitarem "caminhos equivocados e com receitas destrutivas", é indispensável que o Estado Laico também dialogue com a ciência, que, quando busca a verdade e é conduzida com vistas à preservação da dignidade humana em plenitude, não contradiz verdades de fé. E nos temas de proteção à vida, a ciência moderna comprova que ela se dá a partir da concepção, o que já impõe substancial amparo jurídico do Estado. A proteção constitucional e legal à vida – única e irrepetitível – a partir de seu início, confirma, pois, aquilo que algumas das maiores religiões já afirmam desde tempos imemoriais.
Assim, quando se defronta com temas como aborto, pesquisas destrutivas com células-tronco embrionárias, comercialização de embriões humanos por clínicas de fertilização artificial, não se pode calar a manifestação de cristãos, judeus, muçulmanos e até mesmo de ateus, como expressão da rica realidade dos que compõem a sociedade brasileira. Quando se sustenta que o Estado deve ser surdo à religiosidade de seus cidadãos, na verdade se reveste este mesmo Estado de características pagãs e ateístas que não são e nunca foram albergadas pelas Constituições brasileiras. A democracia nasce e se desenvolve a partir da pluralidade de idéias e opiniões, e não da ausência delas. É direito e garantia fundamental a livre expressão do pensamento, inclusive para a adequada formação das políticas públicas. Pretender calar os vários segmentos religiosos do país não é apenas antidemocrático e inconstitucional, mas traduz comportamento revestido de profunda intolerância e prejudica gravemente a saudável convivência harmônica do todo social brasileiro.
(os grifos e destaques são meus)
Artigo publicado originalmente na "Folha de São Paulo" de 14/06/2007.
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